sábado, 16 de outubro de 2010

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ IV – OS VELHOS ENGENHOS DE CANA

ASSIM ERA FRANCISCO SÁ IV – OS VELHOS ENGENHOS DE CANA

Enoque Alves Rodrigues

Já se vão longe e saudosos os tempos em que havia em quase todos os pequenos sítios localizados no Município de Francisco Sá, Brejo das Almas, assim como em todo o norte das Minas Gerais, os velhos e barulhentos engenhos para moagem de cana de açúcar. Lembro-me, quando criança, que na Fazenda do senhor Liberato, meu avô,  havia um desses engenhos que durante a época da moagem sempre nos meses de Julho e Agosto, funcionava o dia todo, ininterruptamente.
A lide do velho Liberato, com ou sem moagem, se iniciava sempre ás 04:30 da manhã, quando ele levantava de seu velho catre em couro trançado onde repousava com a Dindinha Justina, minha avó, com um Hinário nas mãos, entoando um hino do qual não me recordo o titulo mas que iniciava mais ou menos assim: “vamos trabalhar...vamos trabalhar”. Todos ali, ao ouvirem esta “palavra de ordem”, levantavam-se, um a um, e acompanhavam-no em cânticos, seguindo todos juntos e irmanados, em direção a imensa sala de visitas que ficava na parte da frente do antigo casarão, aonde jazia uma tosca mesa de madeira coberta por fina toalha de linho branco, denominada “o altar da família”, e ali, em perfeita comunhão, punham-se a orar pedindo que as forças do bem os abençoasse para que tivessem um bom dia de trabalho e que não deixassem que nada de ruim lhes acontecesse. O velho Liberato fazia a leitura da Bíblia de maneira aleatória e depois a traduzia com uma fluência de vocabulário inenarrável, principalmente quando se sabe que aquele “velho matuto” jamais antes tivera qualquer contato com as letras. Os encerramentos destas sessões eram quase que sempre feitos por sua filha mais velha, minha tia Nira, com uma linda oração que lamentavelmente este espaço que me é facultado pelo Jornal MontesClaros.com, que publica minhas crônicas, não me permite estender sob pena de me classificar de fazer proselitismo religioso. Uma pena. Sem entrar no mérito mais traçando uma analogia, informo que estas orações de encerramento eram o mesmo que são hoje os DDS´s corporativos, ou seja, os Diálogos Diários de Segurança que são lidos pelos empregados na parte da manhã, antes de iniciarem suas atividades. Discorrem-se, sistematicamente, sobre os cuidados que o trabalhador deve tomar durante o dia. Recomenda enfaticamente o uso dos Equipamentos de Proteção Individual, etc. Enquanto que nos “DDS´s” de minha tia Nira, - lá na Fazenda “Terra Branca” de propriedade de meu avô-, feitos em forma de oração, se implorava apenas e tão somente pela proteção Divina, ao invés do uso de EPI´s (que não existiam por aquelas plagas).
Finalizada a cerimônia, saiam todos em silêncio, de maneira ordeira, numa fila indiana com meu avô a frente, rumo ao engenho onde já os esperavam o pessoal agregado que iria colaborar com a labuta. Ali já estava tudo preparado a espera do velho João Rodrigues para iniciarem as atividades do dia que mais pareciam Obras de Artes ou coisa derivada de algum quadro de impressionismo do Século XIX, que ainda hoje pairam de forma indelével em minha memória:
Quatro montanhas de canas cortadas no dia anterior cercavam o velho engenho já devidamente equipado com três juntas de bois em cangas aos quais fora dada a incumbência de fazer girar as rangedoras e barulhentas moendas no hercúleo esforço de triturarem, enquanto o dia clareava, aquele mudo de “madeiras doces” da família das poaceaes, do gênero saccharum. Ao lado do engenho três cabanas feitas e cobertas inteiramente com bagaços das próprias canas. Lá ficavam posicionados estrategicamente imensos tachos de bronze em fogo alto a queimar-lhes os fundilhos, que recebiam a garapa da cana que era retirada de um tanque depois de ter sido captada através de cochos que ligavam as moendas ao tanque e tinham como função convertê-la em estado sólido transformando-a em rapadura, melado ou puxa a esta ultima se adicionava a cidra ou cascas de laranja o que a tornava um fino doce dos deuses, quase tudo era vendido no Mercado do Brejo das Almas.
Aquele ritual deixava qualquer um encantado. Até mesmo o pessoal envolvido com aquela lide se orgulhava dela. Imaginem isso, na mente de um guri de oito anos. Era o máximo: mesmo pequeno, eu tinha lá minhas funções. Claro que dentro daquela rígida hierarquia as minhas atribuições eram as mais inferiores. Mais eu também era graduado. Quando eu não estava provando o melado para ver o ponto, estava enchendo o saco da “Dindinha” (avó), pedindo para adicionar logo a cidra ao melado para eu iniciar a comilança, ou então, postava-me no topo de  um dos muitos pés de manga e, uma vez  lá de cima, tentava infrutiferamente contar quantos giros aquelas juntas conseguiam dar em volta do engenho. Tonto e frustrado era sempre obrigado a apear dali sem que tivesse realizado meu intento. Já embaixo me ocupava de contar quantas viagens as pessoas conseguiriam fazer com seus bangüês carregados de bagaços de cana. Enquanto isso o guia dos bois com uma vara à mão que jamais era utilizada ia gritando: "Eh, boi... Formoso... Vamo queimado... Só mais um pouquinho... Contente... Vamos... Sobrero, cuidado... Do outro lado, meu avô feliz com a produção, alisando sua linda e cheia barba branca com as duas mãos (ele tinha esse costume), agradecia a Deus comovidamente aquelas dádivas: "Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade". Bons tempos, aqueles...
Visitem meus blogs:
Enoque Alves Rodrigues, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário