sexta-feira, 30 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS VI – AS SECAS DO BREJO

CENAS BREJEIRAS VI – AS SECAS DO BREJO


Enoque Alves Rodrigues

1970...1971...1972. Anos difíceis, aqueles. A longa estiagem grassava o norte das Minas Gerais. Ouvia-se ao longe apenas e tão somente o estalar de mamonas e a cantiga triste da cigarra brejeira, lá nos confins do tórrido e esturricado serrado.
O brejeiro, coitado, já não sabia mais a quem recorrer. Novenas e mais novenas, dirigidas aos deuses da chuva, saiam de quase todas as casas, cruzavam as ruas do Brejo das Almas, em direção a velha Matriz, onde eram recepcionadas pelo Padre Silvestre.
Em Francisco Sá, Brejo das Almas, fenômenos sobrenaturais processavam-se, incompreensivelmente. Cidadezinha banhada por vários rios, inclusive em sua maioria, com nascentes dentro do município, e pelos inúmeros brejos que inclusive dão-lhe o nome de batismo, agora o que se via era somente seca. Lagoas lindas e atrativas que faziam a alegria da gente brejeira, e de forasteiros que acorriam ao Brejo para banharem-se em suas águas, como a “da barra”, “das pedras”, “do tabual” e rios como “caititu”, carrapato”, “verde”, “são domingos”, “gorutuba”, “dois riachos”, estavam secando. Definitivamente os deuses da chuva não estavam nem ai para a gente do norte de Minas naquele triênio.
Enquanto isso, no povoado de “Lagoa Seca”, na Fazenda de Darcy Bessoni, o meeiro Manoel Rodrigues, ou Mané da Quitéria, pelejava contra uma dúvida cruel que assim como a seca, calcinava-lhe os cérebros.
Previdente, havia retirado da ultima colheita, doze cumbucas grandes de sementes de arroz, feijão e milho para semear na atual safra. Mas a chuva não vinha e a barriga roncava. Os quatro bacuris e Quitéria, pressionavam-no:
- Mané, você não está vendo que neste ano não vai chover por aqui? Estamos em agosto, homem. Veja o céu como está. É melhor a gente comer logo estes grãos e matarmos a nossa fome do que você enterrar no chão e não vingar ou deixar guardado para caruncho consumir tudo!
- Mané, coitado, olhava para cima e não via nenhum sinal de chuva e lamentava: Céus, quando é que vamos ter pelo menos um pouco de chuva para acabar com essa agonia?
- Não teve jeito. Entre a pressão de Quitéria e o ronco famélico da barriga dos bacuris, a falta de perspectivas de chuvas e a ameaça dos carunchos, ele, por certo, optou por comer os grãos. Decisão inteligente, certo?
- Errado!!!
- Ainda saboreavam a ultima refeição com os grãos quando o tempo virou. Densas nuvens, carregadas de água que há muito não visitavam aquelas plagas, agora, pesadas, pareciam arrastarem-se ao chão. Dali a instantes o toró despencou-se. Água por todos os cantos. Jamais, antes chovera tanto naquela região. As Lagoas Secas que dão nome ao lugar transbordavam-se.
- Assentado próximo a soleira, encontramos agora o nosso Mané com o queixo entre as mãos em forma de conchas, triste e acabrunhado, a observar a chuvarada que caia lá fora. Em seu recôndito, com toda certeza amaldiçoava os deuses da chuva. Ainda meditava sobre a sua falta de sorte, pensando, por certo no que faria dali por diante, quando, eis que um locutor da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sacudindo um guizo, anuncia a plenos pulmões, em seu velho rádio ABC que mais parecia a um caixote de abelhas:
- “Alô...Alô, meus queridos lavradores do norte das Minas Gerais. Se vocês ainda não plantaram, vamos plantar! Levantem da cama... Mexam-se...A meteorologia informa que as chuvas que estavam atrasadas nesta região, vão voltar com tudo! Daqui até dezembro, é só chuva e sol. Você, produtor, terá todas as razões para sorrir de orelha a orelha. Vai ser a melhor safra que você poderia colher, talvez em toda a sua vida! Colheita melhor que esta você não terá nunca mais!”. Para incrementar sua fala, o tal locutor finalizava com a música “Meu Irmão da Roça”, gravada em 1972, por Leo Canhoto & Robertinho: “Nazareno do olhar meigo e puro; amparai nosso querido lavrador. Dái a ele muita força para a luta; dái a ele esperança, paz e amor”.
Não foi possível ao nosso querido Mané segurar a barra! Tomado por fúria repentina, frustrações e desilusões, sentia-se ali, diante do rádio, o personagem principal daquelas que para ele seriam gozações e ironias do locutor. Chegaram tarde demais os berros de Quitéria para que ele não espatifasse o pobre rádio na parede, depois de proferir esta frase:
- “Seu locutorzinho de uma figa... Vai tirar sarro da sua mãe, seu FDP”.
É...
Por vezes, dizia Sêneca, não existe vento favorável para quem não sabe aonde quer chegar.
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS V – POLICARPO TAIOBA, O VAQUEIRO

CENAS BREJEIRAS V – POLICARPO TAIOBA, O VAQUEIRO


Enoque Alves Rodrigues

Policarpo Taioba era um vaqueiro que vivia em Francisco Sá, no Brejo das Almas de antanho.
Chapéu de couro com jugular, botas, gibão e um inseparável chicote fundiam-se à sua própria personalidade. Em todos e quaisquer lugares por onde o encontrasse, lá estavam esses apetrechos colados ao seu corpo como se com ele tivessem nascido. Parecia algo congênito.
Nascera, na verdade, em Taiobeiras, mas, ainda criança transferiu-se com toda sua numerosa família para Francisco Sá, Brejo das Almas. Viviam em um pequeno casebre bem no inicio da antiga Rua Padre Augusto. Dona Dezinha, sua mãe, uma senhorinha já beirando os 70 anos era uma biscoiteira de primeira linha. As suas fornadas eram vendidas por dois de seus filhos menores, o Edgar e o Gino, no Mercado Municipal.
Durante toda a semana, Policarpo passava embrenhado nas fazendas de meu padrinho Rosalino, próximo a Lagoa Seca, na lide da ordenha da vaquejada e no pastoreio da bizerrada nos pastos verdejantes. Aos Sábados, retornava ao Brejo quando eu também saia de Terra Branca, fazenda de meu avô, para fazermos as nossas ingênuas, infantis e despretensiosas farras que consistiam em tomar umas “crushes”, refrigerante da época, nos bares do Brejo e depois, já com outros rapazolas, irmos nadar nos dois riachos. Bons tempos, aqueles...
Aos domingos, a diversão era muito rara. Não podíamos repetir a rotina do sábado. Como naquela época poucas eram as famílias que possuíam aparelhos de televisão em casa, toda a petizada ia para o lugar onde eu ficava hospedado, ou seja, para a Pensão da Dona Quino, que ficava na rua, hoje alameda principal, onde quase todos as linhas de ônibus faziam seu ponto final. Lá, naquele velho casarão esverdeado, diante de um não menos velho televisor branco e preto, cuja tela era fixada em uma caixa de madeira, curtíamos os programas de então.
Víamos e não conseguíamos entender como o jovem Silvio Santos tinha tanto dinheiro para que, postado diante de uma interminável fila de vemaguetes, cordinis, rurais e outros carrões da época, realizar a distribuição gratuita a tantos de seus agraciados com essas verdadeiras fortunas capazes de uma só delas, fazer a felicidade de qualquer simples mortal. Belos tempos... Lindos dias, dizia a música do Rei Roberto, fazendo jus aquela ocasião.
No mesmo Canal o Velho Guerreiro fazia vasta distribuição de bacalhau, abacaxis e bananas. Por alguns instantes dava-nos a impressão de estarmos em uma feira livre.
Sentado em um diminuto banquinho de madeira o nosso vaqueiro Policarpo, em sua já mencionada e inseparável roupagem de couro, observada tudo como se estivesse anestesiado.
- Uai, Policarpo, não está gostando da programação de hoje?
- Não é isso não, Noquinho! Faço muito gosto dessa programação, moço! O que eu num consigo entender é a bondade do Sirvo Santo. Como ele tem um coração tão grande assim, moço!
- Coração tão grande? Uai, Policarpo, mas do que é que você está falando, moço?
- Uai, Noquinho, você ainda não entendeu? Por acaso você já viu argúem puraí dando quarqué carro de presente pra outro? Isso não existe em nenhum outro lugá! Só mesmo ai na televisão, c’um Sirvo. Ele é muitcho bacana. Carqué dia desses vô lá em Su Paulo pra pidi um pra ele!
- É...
- Dissestes bem, Policarpo. Somente na televisão se pode ver tanta bondade...
Na prática, por vezes, a teoria é outra.
Inté...
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

sábado, 17 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS – IV – A CAMINHO DO BREJO

Enoque Alves Rodrigues

Ano de 1971. Acabava de descer na velha estação ferroviária de Montes Claros. Estava retornando de Belo Horizonte onde havia estado em busca de dias melhores, antes de definir os rumos que daria a minha vida Severina de jovem pobre, parca cultura e nível escolar beirando a zero. Anos difíceis e literalmente de chumbo, aqueles... sem quaisquer perspectivas de melhoras a curto prazo.
Saindo da estação do trem, cansado da enfadonha e interminável viagem, sentado agora, sobre minha pequena mala de fibra, onde trazia duas mudas de roupas, estava eu ali a observar a estátua do grande Ministro da Viação e Obras Publicas, o Dr. Francisco Sá, quando eis que surge do outro lado da praça, a Jardineira com destino a Cidade de Francisco Sá, ou Brejo das Almas, dos meus encantos, localidade de meu aporte. Saudoso estava da querida terra onde sempre voltava em busca de algum aconchego para o ego ferido por infrutíferas tentativas. Lá, apesar da curta permanência, por obras inexplicáveis a limitada sabedoria humana, encontrava a paz na medida certa e a carga exata para as baterias. Tinha que investir quantas vezes fossem necessárias até encontrar o meu rumo.
-Sentado ao meu lado, um senhor de idade já avançada, o qual trazia nos ombros um alforje de couro onde, dada a sua inquietude e preocupação, havia com certeza algo de valioso que o obrigava a manter o tempo todo, uma das mãos ocupadas, segurando fortemente ao fundo como se estivesse a conferir o seu conteúdo. Em uma das orelhas portava, à guisa de brincos, um pequenino galho de arruda. Olhou-me, fitamente, e como eu não correspondi, desviando o meu olhar para a paisagem do caminho onde já estávamos próximos ao rio verde grande, disse-me:
- De onde você vem, moço?
- Venho de Belo Horizonte, senhor!
- Uai, mas você não pegou a Jardineira na estação do trem, lá em Montes Claros?
- Perfeitamente, senhor, respondi-lhe: Mas quando peguei a Jardineira, havia acabado de apear na estação de Montes Claros vindo de Belo Horizonte!
- E para onde você vai? Você é do Brejo? Quem é sua família lá?
- Respondi-lhe: vou para Francisco Sá. Sou do Brejo e pertenço aos Rodrigues, cujo patriarca é o velho Liberato de quem sou neto. O meu destino final é a pequena fazenda Terra Branca, de sua propriedade, que fica depois de Cana Brava, lá perto do povoado de Vaca Morta!
Por alguns instantes aquele senhor do qual, até então, sequer o nome sabia, permaneceu estático. Olhar fixo no teto da Jardineira. Mudo...totalmente... Silencioso... Meditabundo... Irrequieto... De repente, frases monossilábicas e desconexas. Observava-o, agora meio assustado por não entender os motivos daquela repentina mudança de atitude daquele que supunha já um novo amigo. Nesse entrementes, fui surpreendido por frases agora inteligíveis como:
- Liberato??? Fazenda Terra Branca??? Aquele velho de barbas brancas é seu avô??? Eu não posso acreditar nisso!!! Fale, ai, moço, que isso não é verdade!!! O que é que você está fazendo aqui?
- Calma, Senhor. Qual é o seu problema com o meu avô? Ele é uma pessoa maravilhosa. Do bem...
- É por isso mesmo! Convivi por tanto tempo com o Sr. João Liberato, aquele santo homem. Vários eitos de roças tiramos juntos em nossa juventude. Sei com que luta ele conseguiu o pouco que tem. Como criou seus dez filhos e eu, como já lhe falei, apesar de ter vivido com ele por tantos anos não consegui assimilar quase nada de suas maneiras e hoje não passo de um “judeu errante”! Não tenho paradeiro... Toda a minha riqueza está dentro deste alforje e a minha sorte, acredite, moço, está neste galho de arruda que trago atrás das orelhas!
Mais surpreso e agora muito curioso, indaguei-lhe:
- Desculpe-me, senhor, mas poderia, nesse caso, me dizer o que há de tão precioso dentro de seu alforje?
- Sim, claro, como não? Trago aqui tudo o que consegui “ajuntar” durante toda a minha vida... e tirando do alforje um montão de moedas, mostrou-me.
- Pasmo. Mesmo sem querer lhe frustrar mas, por consciência, não poderia reter comigo tão importante informação, perguntei-lhe:
- Qual é o seu nome, senhor?
- Natanael Ferreira de Oliveira, seu criado! Respondeu-me.
- Pois é, seu Natanael. Mil perdões, mas quis o destino que coubesse a mim, desiludi-lo: Lamento lhe informar que estas moedas que o senhor trás ai em seu alforje a tantos anos e que acaba de me mostrar, não valem nada! Elas não passam de um monte de patacas de cobres enferrujadas, cunhadas que foram no ano de 1901. De lá para cá, muitas mudanças se processaram em nossa economia. De maneira que os cupins das inúmeras inflações as corroeram de forma tal que hoje, em 1971, é possível que o senhor não encontre ninguém que lhe ofereça um centavo sequer, por elas.
- Frustrado, ainda o escutei dizer:
- Moço, não posso acreditar no que me diz. Esse dinheiro é o resultado da venda de uma grande manada de gado que meu pai fez e o que está comigo é a minha parte da herança.
- Mas quando foi que o senhor recebeu esta herança, seu Natanael?
- Foi no ano de 1902!
- Ah, bom... Está explicado!
- Por vezes é melhor usufruir de alguns segundos de felicidade na vida do que deixar que os mesmos se convertam em pó. Não existe vento favorável para quem não sabe aonde quer chegar.
Inté, meu povo.
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS – III - A NOITE DO BREJEIRO AUSENTE

CENAS BREJEIRAS – III - A NOITE DO BREJEIRO AUSENTE

Enoque Alves Rodrigues

Enquanto Firmino finalizava sua fala, por sinal, muito decepcionante para todos nós que o rodeavam e que esperávamos que fosse verdade o que acabava de nos relatar sobre tantas facilidades em conseguir o almejado sucesso em tempo tão curto, outros “brejeiros ausentes”, preparavam-se para nos brindar com seus lindos “causos”, mas que a partir do que nos fora antes contado por Firmino, certamente não iriam nos causar maiores impactos ou surpresas. Estávamos, todos, a partir dali preparados para o que desse e viesse.
Foi assim que Cráudio, fio da dona Marta, (Cláudio, filho da Dona Marta), de posse de seu novo sotaque, o carioca, se aproximou mais da roda e já com alguns quentõezinhos na cuca, deu inicio as suas infindáveis cantilenas de vantagens lá no Estado do Rio de Janeiro, ou melhor, na Cidade de Volta Redonda.
-Lá, sim, dizia ele, é que é lugar de a gente viver. Não falta nada! É só querer trabalhar que o sucesso logo vem!!! Foi assim comigo e com uma dúzia de brejeiros que me acompanharam, mas que não quiseram vir desta vez para a Noite do Brejeiro Ausente por estarem muito atarefados lá no Rio. Eu estou aqui, de certa forma, representando eles, pois não seria justo deixar passar as festas de Setembro no Brejo sem que nenhum de nós pudesse estar "presente" na Noite do Brejeiro "Ausente".
-Uái, Cráudio, disse-lhe Marcolino, filho da Dona Nana da quitanda: Mais o que é que eles ficaram fazendo lá no Rio? Que trabalho é este que não permitiu que eles viessem festejar com a gente as comemorações mais importantes do Brejo das Almas? Você sabe moço, que o mês de Setembro é muito mais importante para nós brejeiros até mesmo que o mês de Dezembro quando se celebra o Natal e Ano Novo?
-Pois é, respondeu Cráudio: eu sei muito bem disso, mas o que eles ficaram fazendo lá é muito mais importante que qualquer festa ou comemoração. Eles ficaram contando o dinheiro do pagamento que receberam na Usina. É que neste mês devido a um problema na Usina, todo o mundo teve que trabalhar dobrado e a conseqüência disto tudo é a grande “bufunfa” que eles agora são obrigados a contar. –Lembrando-se que naqueles tempos o soldo não era creditado em banco, mas pago diretamente ao empregado dentro de envelope-.
-E você, Cráudio, também não trabalhou dobrado na Usina? E onde está o seu dinheiro? Quem está contando para você? Perguntou-lhe, Manoelito de Vaca Morta.
-É simples:
-Como eu já disse, não poderia deixar de vir. Assim eu deleguei a dois colegas meus de lá, que não são brejeiros, para receber o meu pagamento e contar para mim!
-Mas você ta louco, Cráudio! Aonde já se viu isto. Deixar nas mãos de estranhos o seu dinheiro? E o pior: Nem brejeiros são!
-É ai que você se engana, Manoelito: Lá não tem disso de alguém passar a perna nos outros, não! Sabe porque? Exatamente porque todo mundo lá tem dinheiro mais que suficiente para sequer pensar em ficar com algum que não lhe pertence!
Dizendo isto, para surpresa de todos  que o rodeavam, arrancou da guaiaca um pacote com mais de mil flores de aboboras emboladas (notas de mil cruzeiros da época cujas cores eram amarelas).
Atônitos e embasbacados ainda fomos brindados por uma “experta” ironia ou seria um simples gracejo pronunciado no mais autêntico sotaque carioca por aquele "novo rico"  brejeiro:
-Se querex ficar aqui chorando mitseriax, ox problemax são de vocêx. Se ao saírem daqui, pegaram o ômnibux errado para outra localidade que não o Rio, ainda há tempo de corrigir o perrcurxo. Lá é como eu falei...A guaiaca cheia não me deixa mentir. Carioca é gente boa, cerrto? Agora é com vocêix. Eu lá consigo trampox pra todox. Podex creer!!!
-E!
Dessa vez era verdade! Quem diria?
Por vezes, a linha imaginária que separa a ficção da realidade não é tão robusta quanto parece.
Inté, meu povo... Um grande abraço.
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS – II - A NOITE DO BREJEIRO AUSENTE

CENAS BREJEIRAS – II - A NOITE DO BREJEIRO AUSENTE


Enoque Alves Rodrigues

Neste intróito peço permissão a grande escritora que o norte de Minas já produziu, Karla Celene Campos, nascida em Montes Claros mas que durante muitos anos de sua infância e adolescência viveu em Francisco Sá, Membro da Academia Montes-Clarense de Letras, da Academia Feminina de Letras de Montes Claros, do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, etc., para apropriar-me de um de seus textos especialmente na parte que irá corroborar com a minha crônica deste final de semana, a respeito de algumas festas do brejo e sobre a noite do brejeiro ausente. Diz Karla:
-“Em todos os mapas, registros e documentos oficiais consta o nome Francisco Sá para a setentrional Cidade. Porem, mais forte que a linguagem escrita, registrada em cartório, é a linguagem falada, informal, sentida. E é essa linguagem dos usos e costumes do coração que faz com que ninguém se refira ao lugar pelo nome oficial. Salvo nos dicionários, não existem Francisco-Saenses, mas sim, Brejeiros. Brejeiros não visitam Francisco Sá, não existe a noite do Francisco-Saense Ausente. Brejeiros visitam o Brejo e para lá retornam quando Setembro chega, para se encontrarem na “Noite do Brejeiro Ausente”. Caprichos do coração, caprichos.”
Quando chega o mês de Setembro, a Cidadezinha do Brejo das Almas se engalana toda para realizar os festejos comemorativos em homenagem a alguns de seus muitos santos - que neste espaço, com intuito de evitar proselitismos, não declinarei nomes até porque desnecessário seria ao mais simples “brejeiro do brejo”-, mas, principalmente para que os brejeiros se confraternizem, incluindo aqueles, assim como este que vos escreve, se acham distantes da querida terra, sendo que para estes, ou seja, nós ausentes, se instituiu, - vejam se não é muita honra para nós-, a “Noite do Brejeiro Ausente”-.
-Curioso e emocionante para nós brejeiros, que por motivos de força maior que requer nossa lide em busca da sobrevivência, ainda que provisoriamente, fomos privados de participarmos, de vivenciarmos a vida cotidiana do lugar. De respirarmos o puro ar exalado dos muitos morros que o cercam. De caminhar por suas ruas, atos comezinhos e desprovidos de qualquer importância para quem vive o Brejo vinte e quatro horas.
-Pois bem, vinha eu dissertando sobre as curiosidades das “Noites do Brejeiro Ausente”. Vamos lá:
-Outrora, pelo menos o assim foram em todas as noites das quais participei, reuníamos, todos nós brejeiros, nascidos no brejo das Almas, ou, como queiram, Francisco Sá, vindos de várias partes do Brasil e do Globo, em local previamente definido para nossas inocentes comemorações. Ali, cada um, em seu modo de se expressar, pois vários não obstante não se acharem ausentes do brejo por muito tempo, traziam, propositadamente ou não, algum sotaque de seu “segundo lugar”. Assim, bastava que o nobre brejeiro abrisse a boca para se saber de onde ele vinha. Tertúlias inocentes e desprovidas de maldades, já o disse, mas muitas delas por vezes “fugiam” ao bom senso e chegavam a beirar as raias da “crueldade” para quem as ouvia e que por alguma razão de princípios não as queria devolver “a altura”. Refiro-me aos muitos “causos” de vantagens e sucessos inatingíveis em tão pouco tempo, que a maioria daqueles brejeiros ausentes, contavam.
-Sabe, Noquinho, falava-me Firmino, dentro de sua calça amarela boca de sino, cinturão grosso a La Roberto Carlos, grande fivela no formato da face de Jesus de Cristo, - febre daqueles tempos até mesmo pelo sucesso da musica  composta por Claudio Fontana e cantada por Antonio Marcos-, camisa verde e sapatos plataforma, saido do Brejo há apenas seis meses: Lá em Belzonte, no Bairro Carlos Prates, onde moro e trabalho na Fábrica de fiação, já consegui fazer o meu pezinho de meia. Em seis meses, já comprei a minha casa que mais se parece a uma mansão. Tenho vários empregados lá para me servir. Acabo de comprar dois “gordinis novinhos em folha”. Só não vim pra cá com eles por que estão sendo licenciados. Não me falta nada lá! Parece que quando eu saí daqui “Deus pôs a mão na minha cabeça”. Lá é o Eldorado que tantos falam. A minha conta no banco nem te conto... Ainda bem que dinheiro não fala...
-Uái, Firmino, perguntei-lhe cercado por uma multidão de crédulos curiosos ávidos por facilidades e dias melhores:
-E como é que você conseguiu tudo isso em tão pouco tempo? Estou em São Paulo há quase dez anos e posso lhe dizer que lá, onde muitos por aqui acreditam que se junta dinheiro com rodo, a coisa não é mole. Levanto-me, todos os dias as quatro da manhã, entro na obra as sete horas, cumpro, as vezes, doze horas de trabalho, vou a Faculdade transportado pelo trem dos estudantes que sai do Brás, chego de volta no meu “muquifo” quase na mesma hora de sair para o trabalho, não tenho ou jamais tive qualquer vicio, e, acredite, sô, que até para eu vir aqui comemorar com vocês não foi fácil. Dê para nós, meu bom moço, a receita para tanto sucesso em tempo tão curto e exigüo?
-Firmino, com seu indefectível ar brejeiro, sorriu... E porque todos o fitassem com olhares inquiridores para obter a resposta que ele, até então, se negava a dar, assim respondeu, forjando, somente para nos gozar, um caipirês que não era dele:
-“Mais ocêis num muda mesmo, eh cambada de molengas! Tá todo mundo ai quereno riqueza fáci. Quer moleza? Vão empurrá bebo na escada... Raspadura é doce mais num é mole... Vai trabaiá, vagabundos! Eu num tenho nada... Cheguei aqui de “cagona” –ele não conseguia falar carona-... É tudo mentira, bando de urubu!
Inté, meu povo... Um grande abraço.
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

CENAS BREJEIRAS – I - FRANCISCO SÁ ANTIGO


CENAS BREJEIRAS – I - FRANCISCO SÁ ANTIGO


Enoque Alves Rodrigues

De cócoras, na Alameda Central, ponto de encontro da gente brejeira, conversavam informalmente, Neuzão, Almeida e Manel de Vovó, antigos proprietários de bar no Brejo das Almas de então.
- Pois é, já não sei mais o que fazer com o meu bar. Esta seca medonha que assola o nosso norte de minas está consumindo o “estica o braço” – sim, este era o nome do bar do Neuzão, devido que o bar dele de tão pequeno que era não possuía interior. Os fregueses eram atendidos do lado de fora. Apenas Neuzão ficava lá dentro e quando o infeliz aos berros pedia: “oh, Neuzão, sorta ai um torresmo!!!”. Ele, lá de dentro do bar com o torresmo na mão, respondia: “então estica o braço!!!” e assim o torresmo era pescado pelo faminto solicitante que nenhuma outra visão tinha de quem o atendera, senão a de uma solitária e quase fantasmagórica mão que em átimos de segundos após cumprir sua função de deixar o torresmo na mão de quem o pedira, era imediatamente recolhida a espera de futuras incumbências.
Naqueles tempos bicudos, realmente a maré não estava para peixe lá no brejo. Aliás, nem mesmo maré havia. O “único mar” daquela região agreste de minas, ou seja, o rio verde grande estava secando. Os peixes debatiam-se na lama sobre o fundo do rio onde eram apanhados à mão. Via-se, aqui e ali, alguma planta, dessas que resistem a tudo, como o gravatá, a barriguda e pouquíssimas outras, tentando oferecer algum verde, infrutiferamente. Ouvia-se, ao longe, o estalar de mamonas nos confins do sertão. Até o cantar das cigarras “chamando chuva” era triste e melancólico. Enquanto elas, coitadas, de tão fracas e debilitadas que se encontravam pela secura, antes de iniciarem suas cantilenas se certificavam de que estavam realmente firmes, em local seguro, afim de não caírem ao chão. Ao passo que, no solo, suas rivais, as sempre prestativas e trabalhadoras formigas, transitavam em seu vai-e-vem com folhagens a tinirem-se de tão secas, presas as suas poderosas hastes. Fazia quase um ano que não chovia nada naquela região e o brejo, mesmo com muitas almas e santos, não conseguiu passar incólume. É a natureza cumprindo o seu curso de imparcialidade.
-Com o seu cigarro de fumo de rolo preso entre os dentes, Almeida, outro dono de bar fazia coro a Neuzão.
-Uái, sô, você num imagina que já faiz quse treis mêises qui num entra niuma vivalma no meu bar. Tô passando um perrengue dos diabos. Lá in casa já num tenho mais o armôço pra vendê pra comprá a janta. Num sei mais o qui vô dá pra Creuza cuzinhá. Os bacuri já estão cansados de beldroega e fubá de miio carunchado. Adespois foi grande o meu prejuízo na tentativa de vendê o meu bar prá aquele mardito “seo João”, ferroviário de Montes Claros de uma figa. Magina ocêis que pra impresioná ele eu gastei toda a minha reserva, truxe um montão de gente pro bar pra cumê e bebê de graça enquanto ele me visitava e adespois o desinfeliz ainda veio me falá qui num pudia comprá meu bar apusquê era muito movimentado e que ele já tinha trabalhado muito na vida e qui agora ele queria um negocio só pra passá o tempo e não pra trabaiá. Qui eu devia tamêm pensá nisso apois eu trabaio muito. Qui ele nem pudia imaginá o quanto de dinhero qui eu ganhava com tanto movimento. Qui ele já está apusentado e qui num necessita mais de tanto dinhero para vivê. É mole, meus cumpades!!!
-Manel de Vovó, mineiramente, ou melhor, brejeiramente, só observava. Eram muitos os lamentos dos dois amigos. Estavam, sem dúvida alguma, em situação de penúria. Não. Ele não faria coro a tamanha desgraça! Ainda de cócoras, manuseava entre os dedos uma pequena folha de fumo que pretendia mascar. Sem querer dar o braço a torcer. Mas também desprovido de quaisquer condições que o colocasse em melhor situação que seus iguais interlocutores, balbuciou, de forma quase que inaudível o seguinte:
-Uái, sô. Ocêis arreclama apusquê quere! E apontando para o morro do mocó, lá ao longe, quase inatingível a olho nu, completou: “na barriga do mocó há um tesoro que foi escondido lá pelo bandeirante cujo nome num me alembro. Isto é verdade... num é lêndia...o cumpade firmino mesmo pode confirmá. Ele viu a bola de fogo azú qui sai de tráis do morro e cai lá, exatamente onde o tesoro está. O qui acuntece é qui aqui num tem homes de corage pra ir cumigo lá disinterrá os oro. Apusquê ocêis dois ao invêis de ficá ai chorano misera num vem cumigo? O será coseis tamêm é uns tremendo medrosos qui tem medo de fantasmas?
-Não ouvindo de nenhum dos dois amigos qualquer resposta as suas provocações, decepcionado e supondo-se ser o melhor de todos, bateu-se em retirada.
-É...
-Por vezes é melhor deixar como está para ver como é que fica.
Um grande abraço amigos.
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.