sexta-feira, 14 de maio de 2010

RECORDAR É VIVER – REMINISCÊNCIAS DO VELHO BREJO 2



Enoque Alves Rodrigues


Na terça-feira, dia 04/05/2009, fez exatamente um ano em que estive visitando a querida Terra que a Divina Providência designou para que eu reencarnasse na atual existência física. O querido e inesquecível Francisco Sá, ou como nós “brejeiros autênticos” carinhosamente o chamamos, “Brejo das Almas”.
Fazia muitos anos que não retornava ao meu berço natal e como pude narrar em matéria publicada neste mesmo espaço, muitas foram ás mudanças processadas ali, naquele pequeno torrão, encravado em um dos extremos do norte das Minas Gerais, no decorrer destes anos todos.
A começar pelo Largo da Matriz, que de tão lindo que se encontra atualmente, em nada se assemelha ao antigo Largo daqueles “lejanos tiempos”. Em um banco qualquer que existia ali, vestido com minha melhor roupa, enquanto aguardava o inicio das missas de domingo, celebradas por Sua Reverendíssima, o Padre Silvestre Classen, sentava-me juntamente com a “doce plebe brejeira”, meus eternos iguais, para, imaginem, fazermos o que?...
-Poupo-lhes a curiosidade, pois por mais que sejam prodigiosas vossas mentes, com toda certeza não conseguiriam adivinhar nunca. Reuníamos ali naquele local estratégico por onde todos e quaisquer viventes que entrassem ou saíssem do Velho Brejo teria que passar, para simplesmente nos deliciarmos com a “grande e inusitada descoberta”:
-Contar carros.
-Contar carros?
-O que é isso?
-Sim!
-É isso mesmo o que o amigo leitor entendeu! Pouquíssimos eram os veículos a motor naquela época no “Velho Brejo”, apesar de não se fazer tanto tempo assim, afinal não sou tão velho, que havia quem como nós ainda se dedicasse a contá-los e, muitas vezes, apenas os dedos das mãos eram mais que suficientes para tanto. Naqueles calorosos tempos que insisto, para não deixar dúvidas quanto a minha “jovial idade”, não se vão tão longe, o principal veículo que imperava por estas minhas adoráveis plagas que carinhosamente chamo de “beldade do norte de minas” eram os veículos de “tração animal”, movidos pelo mais puro combustível com o qual eram cuidadosamente abastecidos por seus donos, em seus “auto postos de origem”. Combustível este que se denominava “capim colonião”, que era encontrado com a mais absoluta facilidade em quaisquer paragens.
-Ao contrário dos possantes veículos a motor, como as jardineiras, rural, camionetas, jeeps, caminhões, etc., que sempre surgiam de um mesmo lugar, vindos dos lados de Salinas, Taiobeiras, Grão Mogol, e outras localidades nesta direção, mas sempre com passagem pelo velho Largo da Matriz e com ponto final na antiga rua principal, hoje Alameda, em frente à Pensão da Dona Quinó, - pois naquela época ainda não existia a Rodoviária-, “os veículos de tração animal”, ou melhor dizendo, carroças, charretes, carros de bois, juntas de burros com cangalhas ao lombo carregadas dos mais preciosos produtos produzidos nos mais longínquos recantos pela mãe terra, “brotavam” de todos os lados e lugares. Eles vinham carregados de alho, algodão, rapadura, banana, melado de cana, cachaça, tempero, mandioca, milho, farinha, fubá, arroz, cidra e outros. Ao chegarem ao Largo da Matriz, no entanto, o caminho deles se afunilava. Iam todos em um só rumo, ou seja, em direção ao velho e improvisado “mercado”, onde na maioria das vezes, diante das dificuldades em encontrar quem dinheiro tivesse para de suas mãos adquirir seus produtos, pois naquele tempo não era fácil se defrontar com uma “flor de abóbora” (nota amarela que valia mil cruzeiros), negociavam-nos por escambo.
Dessa forma, quem tinha arroz procurava negociar com quem tivesse feijão, óleo, querosene, sal, roupas, ou qualquer outro produto diferente do seu. E assim, aquele velho e hoje inexistente “point” se transformava em um verdadeiro “ajuntamento cigano” e a petizada menos ou quase nada favorecida, ficava ali, às espreitas, como cachorro faminto, sempre no aguardo de que alguém necessitasse de “uma força” para movimentar alguma cangalha, saco ou alforje, em troca de algumas frutas. Éramos, no entanto, demasiadamente “esnobes” e “interesseiros”. Se durante os dias úteis da semana, rezávamos e até fazíamos novena em prol do aparecimento destes “veículos de tração animal”, que, por vezes, depois de oferecermos aos seus donos a nossa “ajuda”, nos auferia, “alguns dividendos” com os quais, com toda a nossa humildade e honestidade, dávamos “um chega pra lá nas solitárias ou tênias famintas”, nos finais de semana, fugíamos deles. Até fingíamos jamais tê-los visto. Virávamos lhe a cara quando inesperadamente surgiam à frente. Aliás, aos domingos e feriados, nós, do alto de nossa “pompa”, até achávamos esses pobres veículos de tração animal, parecidos “com nada”. -Verdadeiras geringonças. Sequer olhávamos para eles quando ao longe “brotavam”. Sim, a redundância é proposital: Eles, por surgirem do nada, pareciam “brotar do solo”. Tínhamos grande “tino comercial” e sabíamos distinguir o “nosso negócio” da semana, da diversão de domingo e a nossa diversão era contar os “carrões” de então.
-Eles eram privilégios da nata mais abastadas da sociedade “Brejalmina” (gostaram do gentílico?) Em sua grande maioria, políticos, grandes fazendeiros donos de importantes latifúndios ou emergentes vindos estes, não sei de onde, uma vez que no Brejo daqueles tempos, quem nascesse rico ou pobre estava fadado a morrer em suas respectivas condições sócio econômicas hereditárias. Se você desejasse realizar o seu sonho de um futuro melhor, tinha que “fugir do brejo”. Esse foi o meu caso e de milhares de brejeiros.
-Era para todos nós, muito fácil, identificarmos naqueles tempos, a que classe social o indivíduo pertencia. Podia ele vir numa velocidade de 300 quilômetros por hora. Bastava-nos apenas e tão somente termos reflexos para identificar qual era o tipo de seu carro e “batata!!!” Se fosse jeep com tração nas quatro rodas, camioneta ou rural, de preferência sujos de lama ou barro, estávamos convencidos de que, seus donos, eram fazendeiros; vinham de suas imensas fazendas. Quando ocorria o contrário ou até mesmo se estes veículos estivessem sempre limpos, tínhamos a certeza de que seus donos eram alguns ricos que viviam no perímetro urbano do velho Brejo.
Nesse caso, os pobres veículos de tração animal, ou seja, aqueles puxados por burros, bois ou quaisquer outras espécies animálias, não recebiam de nós nenhum mísero e desprezível olhar. Eles se contorciam todos de inveja e até mesmo de raiva. Mas, fazer o que?
-Quiçá lá no fundo de seus “recônditos”, eles, pobres coitados, fizessem a clássica pergunta:
-“Mais o que é que esses desajeitados, horríveis e mal acabados carrões motorizados tem que nós não temos?”
-Uái, sô, precisa responder?
Ao contrário de seus temíveis e desiguais concorrentes que nenhum resíduos vertia senão uma quase imperceptível fumaça, os resíduos deixados por estes “pobres diabos”, de coloração esverdeada, com odor um pouco diferente que o da tradicional “gasosa”, -utilizada em seus concorrentes veículos a motor-, resultantes da “queima de seus combustíveis”, iam ficando para trás, cobrindo as ruazinhas do velho Brejo das Almas, hoje a minha, a sua, a nossa querida e encantadora Francisco Sá, Minas Gerais, Brasil, a maioria delas, antanho, de paralelepípedos ou chão batido, com um verdadeiro e sólido “tapete persa”, os quais, ao contrário dos originários do velho Oriente, nos quais muitos gostariam de por os pés, estes todos evitavam sequer passar por perto.
-Voltando a linda Igreja Matriz, localizada no não menos lindo e já acima mencionado Largo, ou melhor, na lindíssima e muito bem conservada praça cujo nome faz justa homenagem ao personagem que mais fez pelo Brejo, Jacinto Alves da Silveira, sob o qual já dediquei aqui neste espaço bem como no livro que escrevi e que ainda não quis publicar, várias páginas a respeito. Francisco Sá, não o Ministro que nasceu nos arredores, na Fazenda de Santo André e que foi responsável por levar a Estrada de Ferro Central do Brasil para o norte das Minas Gerais, mas sim a Cidade, de Francisco Sá, muito lhe deve. Talvez, não fosse ele, ela não existiria. A história é pródiga em atos de esquecimentos dos mesmos vultos que a escreveram. Jacinto Silveira é, a meu ver, um desses injustiçados.
-Achava-se a Igreja Matriz quando de minha visita ao Brejo em 04/05/2009, pintada recentemente. Adentrei-a. Agradável aroma de tinta fresca subia-me às narinas. Sentado ali, sozinho, agora homem feito, de há muito formado, que tanto lutou e muitos Mundos correu em busca de uma digna subsistência. Católico Espírita há quase quarenta anos, etc. Olhar fixo no Crucificado, retroagia-me ali, no tempo e no espaço, as despretensiosas peripécias de meus tempos de menino e as minhas furtivas idas aquela Matriz, devido meus avós pertencerem a outro Credo. Eram adventistas.
Naqueles tempos, as missas celebradas pelo Padre Silvestre eram quase que o mesmo que o são hoje as missas celebradas pelos chamados “carismáticos”. O Padre Silvestre, que minha geração conheceu sempre foi muito sério. Estatura mediana tendendo para alto, tez branca, olhos azuis, meio careca e um sorriso largo no rosto, claro, quando queria. Eram muito alegres suas missas e muitas foram ás oportunidades que tive de presenciar o querido Sacerdote incrementa-las com algumas anedotas extraídas e sempre embasadas nos Evangelhos. Daí que sua popularidade e suas missas arrastavam multidões.
-Eu tinha sete, oito ou nove anos e morava em São Geraldo, quando lá pelos idos de 1960, fui batizado pelo Padre Silvestre. A chegada dele, sempre a cavalo ou de jeep era uma festa. Por se tratar do batismo da petizada quase todos na mesma faixa etária, vestimos nossas melhores roupas e, perfilados, quase que em posição de “sentidos”, assim como o fazem os recrutas no exército, ficamos aguardando ansiosamente pela chegada do Padre. No dia anterior havia chovido muito. Não obstante, vários candidatos da região do Brejo haviam estado em São Geraldo e naqueles “belos” tempos quando na caça implacável ao precioso voto do eleitor, tudo valia, até mesmo a fartura cavalgar sobre a miséria, “rolou”, em frente a pequenina Igreja que ficava ao lado do Cemitério, um grande comício com comes e bebes a vontade. Para quem não sabe ou não mais se lembra, naqueles tempos, os apetitosos espetos de churrasco eram assados sobre uma valeta, aberta no chão a guisa de churrasqueira onde se colocavam os espetos diretamente. Sem “maiores delongas”.
Fizeram a tal valeta que em forma de serpente, sumia de vista. Assaram-se os inúmeros espetos de churrascos que suavizaram muitos estômagos famintos. Vieram os políticos e deram seus respectivos recados e finalizaram o evento. Mas ninguém se lembrou de tapar a tal valeta. Nove horas da manhã, continuava uma garoinha fria e persistente, quando eis que na entrada do lugar surge o padre com sua comitiva. Ao vê-los, pusemo-nos a rezar. A maneira que ele ia se aproximando, nós, para fazermos média, aumentávamos nossas vozes, prontos para a saudação de boas vindas.
Por vezes, o destino nos pregam peças em forma de inexplicáveis coincidências que por mais que tentamos, não conseguimos entender.
-Aliás, é um grande equivoco da humanidade que habita este Orbe de expiações e provas debitar na contabilidade das coincidências, fatos e feitos de a muito planejados lá em Cima pelos Arquitetos do Universo...-
-Pois bem, não é que no exato momento em que o Padre descia de sua montaria... Quando nós preparávamos os nossos pulmões para com grandes haustos fazermos a nossa saudação “bem vindo santo padre...”, surge ao nosso lado aquilo que em nossa imaculada inocência mais temíamos: quatro musculosos indivíduos, cada um com uma ponta de forquilha às costas e no meio delas, uma rede, com um pobre defunto a caminho do campo santo logo ali adiante! Atrás vinha sua doce e inconsolável viúva, uma senhorinha de meia idade, vestida de preto, com um terço às mãos, juntamente com sua numerosa prole de pequeninos, todos aos prantos. Acompanhavam-no até a derradeira morada. Foi, queridos amigos leitores, muito para as nossas frágeis pernas com sua ossatura ainda em formação. Ficamos estáticos. As pernas bambeavam. Nossas vozes não saiam. O Padre, que até então não havia presenciado a mesma cena que nós, não entendeu, evidentemente, nada do que estava se passando com a gente. Surpreso e decepcionado por não ter sido “saudado”, vinha em nossa direção. Olhar firme e até inquiridor, focado em nós. Queria, por certo, saber os motivos de nossas indiferenças ou talvez, dependendo de nossas justificativas, nos amaldiçoar ou, quem sabe, “negar os ritos do santo batismos aqueles “capetas em forma de guri”. Mas não foi necessário. De relance ele viu a mesma cena que nós e de imediato assimilou nossa reação. Bondoso, no exercício do verdadeiro sacerdócio, para nos tranqüilizar, abriu-nos um largo, porém tímido sorriso proferindo algumas palavras como: não se assustem. Isso é comum. Todos nós morreremos um dia. Para morrer basta estar vivo. Vocês devem ter medo é de certos vivos. Quem morre não faz mal a ninguém. Dizendo isto, pensou partir rumo ao cortejo para agora, dirigir algumas palavras de consolo à viúva. Mais ele só pensou. Pobre Padre, tão compenetrado estava em seu mister, que não viu a sua frente, a tenebrosa valeta cheia de água suja, barro, restos de espetos (só a madeira), com a boca escancarada para de uma só vez traga-lo. Não teve jeito... O querido Padre não conseguiu “brecar” a tempo. Caiu inteirinho dentro da valeta. Nós que até então estávamos tristes, com medo e meditando sobre as sábias palavras que ele segundos antes nos dissera, não conseguimos nos conter. Ao vê-lo ressurgir daquele “inferno” com seus reluzentes sapatos e sua impecável imaculada batina preta cheios de lama, pusemo-nos a rir, sem parar. Coisa de criança que Deus em Sua infinita Bondade “entende e perdoa”. A mim, por ser o maiorzinho, coube, finalmente, “fazer as honras da casa” e a primeira boa ação do dia, estendendo as minhas pequenas e tenras mãos ao santo padre grandalhão, que, agora de pé, esfregando as mãos sobre a batina como se a quisesse limpar, esbravejava:
-Mais para que diabos vocês fizeram este maldito buraco?
-Vocês não tem mais o que fazer?
-Onde estão os pais de vocês, seus diabinhos?
-Vocês não vão mais à escola?
-É isso que estão lhes ensinando lá?
-Por ser o maiorzinho, de novo, coube a mim dar as explicações que afinal não foram tão difíceis assim.
-Sabe, santo padre, é que ontem á noite estiveram aqui, em comício, Feliciano, Montalvão e outros incontáveis candidatos, pedindo votos para as próximas eleições. E esta imensa valeta foram eles que mandaram abrir para assar os espetos de churrascos com os quais encheram as nossas “pobres e severinas barrigas...”
-Uái, Noquinho, exclamou, contemporizando! – Ele me conhecia de nome. Ia sempre a São Geraldo:
-Se foi Feliciano que abriu. Está aberto! Eu entendo que ele devia ter fechado, mas deve ter se esquecido. Ele é muito ocupado. Depois como você bem disse, foi por uma causa muito nobre. Afinal, matou a fome do povo. Acrescente-se a isso que eu não me machuquei e que por isso ninguém morreu! Pobre, Noquinho, é aquele coitado que vai ali dentro daquela rede. Para ele não tem mais jeito. Tudo acabou. Assim como tudo um dia acabará para todos nós. Vamos, filho, que eu preciso me limpar para batizar vocês, pois dessa vez não vim para dormir aqui. Tenho que retornar ao Brejo ainda hoje. É muito corrida a minha vida, sabe Noquinho! Mais eu gosto disso. É a Missão que Deus me deu da qual pretendo um dia prestar contas a Ele...
Um forte abraço meus queridos conterrâneos Francisco-Saenses e Brejeiros.
Inté...
Enoque Alves Rodrigues
-Sou muito simples para me julgar merecedor de qualquer homenagem. Mesmo assim agradeço aos diletos amigos do Brejo pela lembrança de meu nome. Em Julho ou Agosto, estarei ai para vê-los e recebê-la.
Abraços
Enoque

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