RECORDAR É VIVER – REMINISCÊNCIAS DO VELHO BREJO 3
Enoque Alves Rodrigues
Outrora, para quem entrava no Brejo das Almas vindo de Montes Claros, passava em frente a um casarão de cor rosa, que pertencia a família tradicional do lugar a qual conhecia de vista. Ali, naquela linda e espaçosa casa, além da paz e tranqüilidade que pareciam reinar, segundo reza a tradição, se fazia o mais fino e requintado doce daquela região. Eram vários os sabores: doce de leite, goiaba, banana, cidra, etc. Os transeuntes inadvertidos quando passavam defronte aquela casa, eram, fatalmente, surpreendidos pelos mais puros e tentadores aromas, que voláteis em forma de fina fumaça, chegavam-lhes até as narinas, penetrando no âmago, por fim atingindo o olfato de maneira, irremediavelmente “destruidora”. Era difícil resistir àquela tentação da gula. Se a boca estivesse seca, devido ao calor e poeira do Brejo, imediatamente umedecia-se. Era como se olhos d’água brotassem do estômago. Às gestantes, coitadas, que passassem por este “flagelo” sem que oportunidades tivessem de provar dessas iguarias, poderiam causar aos seus rebentos “sérios danos”. Depois de muito tempo consegui descobrir quem na verdade residia naquela casa e onde se conseguiria encontrar aqueles doces. Eram produzidos em grande escala e que tinham como destinação, creio, o comércio do Brejo. O casal que os fabricava, sobre quem já tive a oportunidade de fazer pequena e rápida alusão neste espaço em matéria anterior, era impressionantemente sensacional. Era o Sr. Antonio Miranda e a Dona Edite. Ele, um senhor naquele tempo de meia idade e sua senhora, a dona Edite, apesar de muito bem cuidada, parecia ser um pouco mais velha. Tinham muitos filhos, que via com freqüência apesar de não ter estabelecido com eles, por absoluta falta de oportunidade, elos que levassem a uma aproximação de amizade intensa.
-Subindo mais adiante, ainda no inicio da pequena ladeira íngreme, depois de atravessar o sitio do velho Mateus e cruzar uma pinguela, via-se ao longe a pequena chácara de bananas, laranjas, lima da pérsia, cana e outras culturas. Pertencia a Dona Maria Antonia ou “Sá Antonina”, senhora já com idade avançada, mais muito forte ainda, que fazia questão de acompanhar em frente a sua propriedade, os carregamentos das carroças, charretes e cangalhas ao lombo de burros. Ela, a guisa de conferir seus produtos a fim de evitar quaisquer erros de contagens e prejuízos, postava-se com uma velha tabuleta em uma das mãos e na outra segurava um pedaço de carvão com o qual registrava na tabuleta sua infalível contabilidade. Assim como a maioria dos brejeiros de antanho, “Sá Antonina”, jamais, antes estivera sequer em frente a uma Escola. Não sabia ler nem escrever.
-Sendo assim desnecessário seria também dizer que não conhecia matemática, certo? -Errado!
-“Sá Antonina” sabia contar melhor que ninguém! Só que por não saber escrever, por ter pouca familiaridade com os números, ela que não confiava em ninguém a sua contabilidade, executava suas indelegáveis prerrogativas de “contadora”, de uma maneira meio inusitada e pitoresca: Para que nada lhe escapasse às vistas, com o intuito de ficar ao nível do meio de transporte, colocava-se ao lado do mesmo, um antigo catre tecido com couros de bois, catre este, utilizado anteriormente pela “qüinquagésima geração de sua família”, sobre o qual, por ser ela pequenina ao extremo, colocava uma cadeira, contemporânea do catre, onde após organizar suas vestimentas, --uma longa saia amarrada com uma tira de tecido à cintura-, começava a fazer a contagem; era mais ou menos assim: os carregadores saiam de sua chácara por um único portão que dava na rua. Ao chegarem ali onde ela estava, paravam e punham-se a fazer a contagem. Ela, de cima, apenas observava. Quando entendia que a contagem não estava correta, fazia o infeliz carregador repeti-la quantas vezes fossem necessárias ao seu difícil e indócil convencimento. Para facilitar seu trabalho, adequando-o as suas limitações culturais, a contagem era feita invariavelmente por dúzia qualquer que fosse o produto. Dessa forma, os cachos de banana eram fracionados de doze em doze unidades inteiras. Se no final do cacho a ultima fração não alcançasse as doze unidades, ela mandava retira-la, ainda que em tal fração tivesse onze unidades. Quando ela considerava correta a contagem fazia o registro com um simples risco com o carvão na tabuleta o qual representava uma dúzia, sendo os quatro primeiros riscos na parte externa em forma de um quadrado e os dois na parte de dentro em forma de xis. Tinha ela ai em sua contabilidade seis dúzias e assim por diante.
Todos os produtos ali coletados tinham como destino certo o velho e improvisado mercado que como o descrevi na crônica anterior, mais parecia a um “ajuntamento cigano”. Vendiam-se de tudo naqueles confins dos Sertões das Minas Gerais, no nosso querido Brejo das Almas. Quando não havia por lá quem tivessem dinheiro para comprar seus produtos eles negociavam-no entre si por escambo.
-Quanto a “Sá Antonina”, tudo aquilo que ela não conseguia vender desta maneira no atacado, ela oferecia no varejo de forma simplificada que ainda hoje, não obstante o passar de tantos anos, ainda é praticada à beira de qualquer estrada em vários estados brasileiros.
-Como ela, “Sá Antonina” morasse na beira da estrada de Montes Claros – Francisco Sá, ou Brejo das Almas, montava ali às margens uma pequenina mesa de madeira tosca sobre a qual fazia a exposição de seus produtos, disponibilizados para a venda aos estradeiros. Era um sucesso!!!
-No final da subida, após passar a chácara de “Sá Antonina”, do lado esquerdo de quem seguia em direção ao centro do Velho Brejo, cercado por densas e floridas “barrigudas”, ficava o sitio do velho Juca Brinco. Mulato alto, forte, que mancava da perna direita, devido ser esta mais curta que a outra, que, segundo ele contava, era resultado de várias pelejas que tivera com algumas suçuaranas em defesa de suas criações de rezes de seus apetites vorazes. O brinco que fora inserido, compulsoriamente em seu nome, que exatamente pelo fato de a principio ele detestar, acabou “colando”, era atribuído a uma marca de nascença que possuía atrás de uma das orelhas, que, saliente, dava a aparência de brinco. Muito tempo depois, munido de infantil desejo de livrar-se do apelido que o projetara, - era conhecido como o seu Juca “Brinco”, o maior contador de histórias do Brejo-, de posse de suas parcas economias, amealhadas a duras penas com as vendas de carnes de alguns garrotinhos, que certamente não haviam sido notados pelas onças suçuaranas, rumou, aquele simpático senhor para Montes Claros. Ali chegando, procurou um dos melhores cirurgiões da velha MOC de então. Procedimentos cirúrgicos bem sucedidos, encontramos agora o nosso Juca, de retorno ao convívio de seus amigos e familiares no Brejo. Transformara-se, no entanto. Simpático, afável e cordial, traços anteriormente inerentes a sua personalidade, agora era um velho ranzinza e intoleravelmente rabugento. A molecada ao vê-lo, fugia. Os mais velhos, seus amigos o questionavam:
-Mas o que houve com você, Juca! Porque razão você está tão mudado desde que retornou de Montes Claros?
-Sabe o que é, Cardoso. Fiz a maior burrada da minha vida! Gastei toda a minha fortuna para me livrar daquele maldito brinco, por nada!
-Surpreso, Cardoso, voltou a indagar-lhe:
-Mas como por nada, Juca? Você não tem mais o brinco que tantos aborrecimentos lhe causavam. Do que é que você vai reclamar agora homem?
-Pois é, Cardoso. Parece que só você vê que eu não tenho mais brinco, porque para a maioria desses brejeiros bocós da lagoa do sapo, pinguços adoradores de “Chora Rita” e “Providência do Mangal”, eu continuo sendo Juca Brinco. Para eles, de nada valeu o meu esforço. O pior é a gozação deles, sô!
-Mas que gozação, Juca? –Outra vez, Cardoso, surpreso!
-Quando falo pra eles que retirei o brinco numa cirurgia em Montes Claros, eles fingem que não acreditam e ainda me dizem:
-“Uai, sô. -Ocê pensa qui nóis aqui é troxa! A quem ocê pensa que vai enganá, Juca Brinco? Nóis aqui bem sabe qui ocê dexô seu brinco c’um orive lá em Montes Claros, para lustrá ele procê e colocá u’a pedrinha azú aní. Qui depois ocê vai buscá para usá de novo!”
-É!!!
-Por vezes não se deve mexer com o que está quieto. As “marcas e patentes”, mesmo com defeitos de fábrica, tem que ser preservadas!
Um grande abraço, amigos.
Enoque Alves Rodrigues
Agradeço aos amigos do Brejo pela homenagem a minha simples pessoa. Apesar de não me julgar merecedor, estarei ai em Julho ou Agosto para recebê-la e abraça-los.
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