Enoque Alves Rodrigues
Braços curtos, baixinho e barrigudo. Com dois reluzentes dentes de ouro na arcada superior da boca. Camisa estampada sempre desabotoada, deixava à mostra uma musculatura peitoral má nutrida e bastante judiada pelo passar dos anos implacáveis. Calça arranca toco amarrada na cintura, sem cinto. Sandálias franciscanas aos pés e, na cabeça, um velho e surrado chapéu de couro com três estrelas sendo a maior delas situada ao meio, no estilo Lampião. Lenço vermelho sujo no pescoço. Sanfona de oito baixos colada no peito como se com ele tivesse nascido. Cão preto de olhar tristonho e distante, cujo nome, “vazamundo”, fazia jus aquele seu olhar para alguma imensidão desconhecida do planeta. Pronto: estava, ali, na frente de tudo e de todos, formado o mais perfeito trio que naqueles tempos era o principal, ou melhor, o único responsável pela alegria que contagiava as tardes, noites e manhãs Brejeiras. Sim, Francisco Sá, Minas Gerais, Brasil, ou, o “Velho Brejo de todas as Almas”, deitava, acordava e levantava ao som daquela sanfona. Não é preciso que o leitor tenha muita idade para se lembrar do que estou narrando, afinal, refiro-me a década de 1970.
Zezim era exímio tocador. Sanfoneiro dos bons, cujo repertório vasto e eclético o permitia passear por todos os ritmos. Ia do Rei do Baião, Luiz Gonzaga ao Rei do Iê, iê, Iê, Roberto Carlos, em frações de segundos. Bastava apenas que alguém de entre o respeitoso publico solicitasse que em ato continuo e simultâneo, os dedos rústicos e calejados por outras lides, mais sempre ágeis, daquele autentico brejeiro, em sintonia perfeita com o limitado teclado, dedilhava-o em uma maestria inimaginável aos olhos humanos, ainda mais quando se sabe que nenhuma instrução tivera antes aquele homenzinho. É muito simples para os céticos que atribuem todo e qualquer fato anormal as coincidências naturais, ignorarem que tamanha aptidão não tenha sido dada aquele matuto pelas mãos da Divina Providência. Mas certo está que é desnecessário ter fé elevada para não duvidar disso: Zezim Tocador foi designado pelo lado de lá, para vir ao mundo alegrar a gente brejeira. Os “Caras lá de Cima” quando lhe enviaram para cá, sabiam muito bem o que estavam fazendo. Que não havia no Orbe Terrestre localidade mais triste e melancólica e tão carente de um pouco de alegria ou bagunça mesmo, que o velho Brejo das Almas. Aí mandaram Zezim e de quebra o seu cão vazamundo que contracenava com o sanfoneiro, pois enquanto ele dedilhava a velha sanfona, vazamundo, independente da musica que seu dono estava a tocar, punha-se a latir sem parar, como se estivesse o acompanhando em cânticos.
Zezim, ao contrário do que todos imaginavam, não possuía somente uma sanfona. Ele tinha várias. Dizia que um homem prevenido vale por dois, por isso mantinha outras sanfonas para a eventualidade de substituir alguma que apresentasse problemas, afim de não deixar a gente brejeira sem um “sonzinho”. Mas convenhamos, gente boa, divertíamo-nos somente até certo ponto. Porque dia e noite ouvindo aquelas melodias muitas vezes acompanhadas, ao longe, pelo cantar triste das cigarras, transformavam-se, pelo cansaço enfadonho da oitiva permanente das cantilenas, tudo isso, no mais tenebroso martírio. Eram tristes, bem verdade, as tardes, noites e manhãs brejeiras. Precisavam de alegria. Mas “tudo de mais é sobra, uai” assim falamos nós mineiros.
Bem, eclético na musica, eclético na vida. Pois é, Zezim desenvolvia outras atividades que nada tinham a ver com o mundo de Ludwig van Beethoven. Preparava nas horas vagas garrafadas de raízes das quais era ele doutor no conhecimento e as doava para a gente carente de um Brejo das Almas sem farmácias. Ele tinha também “algum negócio” com o invisível, pois era muito solicitado a visitar as fazendas e sítios da região com a única missão de “expulsar cobras” que disseminavam pavor e prejuízos às manadas nas matas e pastagens dos fazendeiros de então.
Pequeno no tamanho, grande na vida. Seria necessário muito mais tempo para que eu pudesse descrever o que foi Zezim Tocador e seu cão Vazamundo para Francisco Sá, naqueles já longínquos tempos.
Inté...
Enoque Alves Rodrigues, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
Visitem meu blog: http://enoquerodrigues.blogspot.com/
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