sábado, 14 de agosto de 2010

CENAS BREJEIRAS VIII - ANTÃO DAS MANDIOCAS

CENAS BREJEIRAS VIII - ANTÃO DAS MANDIOCAS


Enoque Alves Rodrigues

Infante ainda divertia-me sempre que via adentrar o velho Brejo das Almas, ou Francisco Sá, em sua carroça de madeira puxada por uma jumentinha de tez preta beirando a senilidade, Antão das Mandiocas, como era chamado. Vivia ele lá pelas bandas do Catuni, ou para localizar melhor, atrás da serra de mesmo nome que tem, em seu cume, mil metros de altitude.
Sua carroça vinha carregada de milho, mandioca, batata e alho. Seguia em direção ao velho mercado onde em um Box qualquer ele os negociava. Uai, eu disse negociava? Sim, exatamente! É este o termo exato, porque nem sempre ele conseguia caracterizar a venda de seus produtos, trocando-os por dinheiro. Nesse caso, é como já escrevi anteriormente, ele assim como todos os seus iguais praticavam o escambo. Trocava suas iguarias por outras diferentes e assim ia levando a vida, como diria Milionário e José Rico.
Intrigava-me, no entanto, a cordialidade do tratamento que ele dispensava a sua necessária e mais que indispensável animália. Beirava, sem qualquer hipérbole, ao mais carinhoso trato dedicado as moçoilas. Lamentavelmente naqueles longínquos tempos, nos confins de nossa querida pátria amada, salve, salve, não era comum se ver os animais serem bem tratados. Ao contrário, eram muito mal tratados, diga-se de passagem. Vítimas indefesas de covardes contumazes aonde a lei da espora, chicote e ferrão imperava. Antão, não. Ele era diferente. E era isso que me chamava a atenção. A sua jumenta chegava a brilhar, de tão limpa que era. Estava sempre cheirosa e perfumada. Tomava banho todos os dias. Defronte ao velho mercado do Brejo, Antão, antes de desatrelar a carroça de “pretinha” que ele deixava sempre solta a pastar colonião, tirava de um dos bolsos de seu velho jaleco de couro, um pente “flamengo” e punha se pentear-lhes a crina e a falar-lhe aos ouvidos. Não contendo naturais curiosidades pueris, aproximei-me, certa feita, de ambos. Queria ouvir o “diálogo”, ou melhor, o “monólogo” já que “pretinha” não falava, só ouvia. Doces e sábias palavras eram proferidas por aquele simples matuto brejeiro. Eram palavras de gratidão que ele dirigia a “pretinha” pela dedicação diária de toda uma vida com a qual ela o brindava. Agradecia a divina providência por um dia tê-la deixado ainda que enferma, em frente ao seu casebre. Esquecia, no entanto, que se ela ali agora estava, foi exatamente porque ele primeiramente se dedicou a ela, salvando-lhe a vida. Após realizar todo o seu ritual de agradecimentos, Antão das Mandiocas, antes de se retirar para seu trabalho no Box do mercado municipal do Brejo, pedia, humildemente:
-Torça por mim, “pretinha”, para que hoje eu consiga vender alguma coisa para melhorar o nosso sustento. Eu sei que você entende tudo! Você não é uma “cabeça de jumento, não”. Você é uma “cabeça de gente”.
-Uai, eu falei, cabeça de gente?
-Gente!!!
-Cruz, credo! Desculpa ai, “pretinha” se lhe ofendi. Quem neste mundo, além de você me dedicaria tanta amizade, colaboração, respeito, tolerância, humildade e fidelidade?
-Ninguém!
-É...
-Por vezes, a maioria das virtudes não é encontrada nos corações e cabeças humanas onde deveriam sempre estar; mas em lugares tidos equivocadamente, como imprevisíveis e inóspitos: Nos corações e cabeças dos muares.
-“Poor man, poor woman”!
Enoque Alves Rodrigues é divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas e atua nas áreas de Engenharia Civil, Pesada, Obras de Artes, Montagens Industriais e Grandes Estruturas.

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