Belos e longínquos tempos aqueles quando eu, então com treze anos, ia passar férias na Fazenda “Terra Branca”, propriedade de meu avô, que fica no Município de Francisco Sá, ou Brejo das Almas. Quando se falava em ir “pro brejo”, a impressão que se tinha naquela época era a de que se estaria partindo para o outro lado do Mundo. Apesar de hoje se percorrer a mesma distância em poucos minutos, antes eram poucos os meios de transporte sendo os mais usuais o cavalo, bicicleta ou os próprios pés, o que tornava a viagem até o Brejo um périplo. Só que assim como hoje, valia muitíssimo a pena “ir pro Brejo“. Uma vez lá, não se tinha mais vontade de voltar. Tantas eram as novidades e diversões que a Cidade oferecia. Talvez tenha surgido ai o dito popular que diz “que a vaca foi pro brejo”. Certamente que se ela não ficou atolada no meio do caminho, ficou no “Brejo” para todo o sempre, amém! A viagem antes era muito divertida. Se cruzava rios, densas matas, plantações infindáveis de milho, arroz, alho, cana e outras culturas da região, sendo a principal delas o alho, pois naqueles belíssimos tempos “Brejo das Almas” ou Francisco Sá, “beldade do norte de minas” era considerada a “capital do alho”. Alguém ai do outro lado se lembra disso? Pois, é.
Antes de arriar o cavalo e partir rumo ao “Brejo”, havia todo um ritual: Minha Santa “Dindinha” – avó -, (que Deus a tenha em sua Santa Glória), ajoelhava-se ao chão e rezava pedindo a Deus que me protegesse durante toda a viagem. Que guiasse os meus passos. Que iluminasse os meus caminhos. Era como se eu estivesse indo para uma guerra! Depois da reza, fazia-me um rosário de recomendações: Noquinho, meu filho, tenha muito cuidado ao atravessar a “pinguela” do rio que liga nossas terras a Fazenda Minas Novas de seu tio Julio e de sua tia Cota! Você pode escorregar e cair. As águas estão subindo muito! Houve enchentes na cabeceira! Cuidado com cobras pelo caminho! Elas estão saindo da plantação de arroz, na “vazante”. Muita atenção com as vacas ao passar pela Fazenda de “Sinhozão”. Fiquei sabendo que ele tem muitas vacas parideiras com muitas crias novas e você sabe que elas ficam “brabas” quando alguém se aproxima delas nesse estado. Antes de chegar ao povoado de “Vaca Morta”, cuidado com as abelhas “oropa” que estão infestando aqueles pés de “anjicos”, É que estamos na época da florada das laranjas e elas aproveitam para ir até o laranjal sugar o néctar das flores e numa dessas podem picar você!.. Ao passar pelo povoado de “Vaca Morta”, não pare naquele boteco que está na beira da estrada. Lá tem “um trem” chamado “pinga do Sertão” que os homens muito apreciam, mais é só ela entrar pela boca que os “juízo sai pelas zoreias”. Se eles lhe oferecerem, Noquinho, não aceite! Isso pode “viciar você”. -Talvez, ou quem sabe, com toda certeza, seja por isso, que jamais pus qualquer bebida alcoólica na boca-. Santas palavras de minha amada Dinhinha, que prosseguia... Quando passar por Cana Brava, leve meu abraço a irmã Maria de Guido. Fale pra ela que tenho agora quase quarenta galinhas poedeiras. A Dona “Martinha de Seu Jacinto”, fale que Nira, minha filha, tem andado meio doentinha e que peço oração pra ela. Pra Dona “Margarida de Seu Damião”, você fala que a dor que sinto nas costas do reumatismo eu estou aliviando com um tal de “emplasto poroso Sabiá” para ela usar também, para se curar da mesma dor que ela sente desde que teve que forçar pra ter a “Toinha”. Meu Deus... Falando em “Toinha”,como cresceu essa menina! Peguei no colo! Já para o problema de “prisão de ventre”, recomendo para ela tomar bicarbonato. Depois de Deus, é um santo remédio. Diga também pra ela não se esquecer: Quando tiver “arrotando ruim” tomar “ruibarbo”. Sabe, Noquinho, eu acho que esses remédios que estão chegando da Cidade vão acabar substituindo os remédios do mato que temos aqui. Eles já não fazem efeito...
Se em Cana Brava, você encontrar com seu tio “Bimbim”, meu irmão, fala pra ele que nós ainda não descobrimos remédio para acabar com a “papeira dele” mas que “Liberato”, - meu avô - escuta o Edgar de Souza, da Rádio Nacional, todos os dias. Que homem de sorriso gostoso, Noquinho-, e assim que eles descobrirem esse remédio, o Edgar vai contar pra nós e nós contamos pra ele. Diga também que estamos esperando ele para as festas das “cabanas” (meus avós e toda sua família eram adventistas e no mês de Julho costumava-se comemorar esses eventos do Antigo Testamento), cujas festas que duravam uma semana, coincidiam com a moagem das canas no mês de Julho e com os bagaços faziam as tais cabanas onde havia danças, cânticos de louvores a Deus, pregações, batizados, etc. E continuava...Sabe, Noquinho, não quero que você demore muito no “Brejo”, não. Antes de terminar suas férias e voltar para Orion, você tem que descansar bastante, comer muito. Você anda muito fraquinho. Vou fazer umas batidas de cidras – melado de cana quase ao ponto -, para você ficar forte para ajudar seu “pai velho” (avô) no corte da cana em Julho. Lá em Francisco Sá, ou melhor, no “Brejo”, não fique fazendo estripulias. Lá é Cidade Grande e você é matuto daqui dessas matas e não sabe andar nas ruas de lá. Você só tem 13 anos e é bom não ficar na rua até tarde. Fique na Pensão de nossa amiga, a Dona Quinó. É aquela rua onde os ônibus que vem de Salinas, Taiobeiras, Grão Mogol, param. Não tem como você se perder, pois os ônibus ficam bem na frente da casa dela. Entregue para ela esse alforje que está cheio de queijos, farinha de milho, rapaduras, dois litros de melado de cana e dois litros de manteiga! Esse embornal, você leva e entrega para ela com muito cuidado: São ovos de galinha e algumas frutas do conde que ainda não estão muito maduras. Quando você voltar, peça para ela me mandar somente tres litros de “creosene” pra lamparina e dois metros de pavio pra lampião. Não precisa mandar mais aqueles venenos pra espantar muriçocas. Elas não respeitam. Fale que nós estamos usando “estrume seco de vaca” que é bem melhor. Aproveite e passe no Bar do “Seu Neuzão, o Só Cinco” e veja como ele está. Me disseram que ele anda tendo atritos com a esposa. Fale pra ele que estamos orando pela paz no lar dele! Caso você encontre com “Zezim Tocador” diga a ele que antes da moagem das canas Liberato vai mandar trazer ele aqui para fazer a expulsão das cobras do canavial. Mais que ele tem que vir sem a sanfona, pois aqui a nossa cantoria é outra. Se você encontrar com o Prefeito Eurico Pena, fale pra ele que nós ainda não sabemos votar, mais que estamos treinando. Que ele deve ajudar esse “menino careca”, como é mesmo o nome dele? Ah, me lembrei: Feliciano Oliveira. Parece ser muito bom, viu Noquinho? Se você encontrar com algum “Silveira”, Geraldo, Olyntho, Yvonne, diga que Liberato, seu “dindinho”, mesmo não gostando de Política lhes manda lembranças. Caso encontre nas ruas com Rogério Costa Negro, cumprimente, mas não tome o tempo dele. Gente rica não gosta de perder tempo com conversas que não lhes rendem dinheiro. Tome aqui, “duas flores de abóbora”, ou seja, duas notas de mil cruzeiros na época. É para você passar na Loja de tecidos dele, “Casa Branca Costa Negro” pra comprar dois metros de tergal dois metros de brim azul pra eu fazer seu uniforme escolar. Pra seu “dindinho” você traz dois metros de “fazenda” azul com riscas de giz, pra fazer camisa, peça para o vendeiro duas calças “arranca toco”, fala que é para “Seu Liberato” que ele sabe o tamanho. Já para mim peça quatro metros de chita daquelas bem “floradas” para o meu vestido longo das festas das cabanas e quatro metros de “morim” para as anáguas e a combinação. Pra sua Tia “Nira”, dois lenços de cabeça sendo um azul e o outro amarelo. Pra sua Tia “Nana” uma sandália de couro franciscana, três metros de fazenda e uma blusa de xadrez vermelha. Já para sua tia “Catarina”, traga aquele colírio e passe no Joca Sapateiro para ver se já costurou o sapado dela. Se você for pegar o caminhão para ir nadar naquelas águas cristalinas dos dois Riachos, tome muito cuidado. Não gosto que você vá pra lá. Mais você é criança e somente aqui com a gente é que você pode aproveitar. Falando nisso, se você passar próximo do “Bar da Barbina” – sim, naquela época em toda e qualquer esquina do “Brejo” havia um bar -, diga pra ela que o “Elpidio”, seu conhecido, esteve aqui em Terra Branca, outro dia querendo comprar uma faixa de terra de Liberato. Mas não deu. Ele ofereceu muito pouco capital.
Quando você voltar, Noquinho, atenção: Isso você não pode nem pensar em esquecer! Passe na “Casa Amarela”, fica na saída para Montes Claros. Se você não souber ir lá, peça para a Dona Quino te levar. Lá eles fazem uns doces de leite dos deuses! Vê se eles lhe passam a receita desses doces! Se você conseguir você vai ter doce por aqui todos os dias!
Bem Noquinho, já tomei muito o seu tempo com minhas recomendações, mais você sabe, né meu filho! É importante! A “Dindinha aqui te ama”! Vá com Deus!
-Lencinho branco acenando...Inté!-
Um grande abraço, amigos brejeiros. Meus conterrâneos!!!
Enoque A Rodrigues.
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