Grande amigo e admirador sincero do Padre Augusto, desditoso e infeliz nos negócios, Niquinho foi, mais tarde, procurar aconchego junto aquele que estava constantemente de braços abertos.
Infeliz por não ter sabido reter grande fortuna, acumulada durante os anos em que a roda da vida lhe sorrira nas páginas complicadas da farmacopéia, redimiu, no entanto, nos dez anos de sofrimento, os grandes erros cometidos no “pano verde...”
Chorando a morte daquele que, antes de tudo, fora pai amantíssimo, uma de suas filhas escreveu, com certeza a soluçar: “Que importa que o pai tenha caído e perdido a fortuna procurasse no álcool o esquecimento? Que importa, se ele nunca deixou de ser bom, se jamais se aproveitou da inconsciência para nos maltratar ou nos odiar?... mas o pai sofria e mais se afundava no erro, quanto mais compreendia a dificuldade de reerguer-se...
Realmente, Niquinho não se distinguia somente pelo brilho de sua inteligência de grande orador e poeta; mas pela bondade inata de seu coração, pelo amor que dedicava aos menos afortunados do que ele! Farmacêutico apenas, mas com aquela vocação toda especial para os diferentes ramos da medicina, aonde estava a dor, ai o encontrava também!
Depois de velho, pobre e corroído por insidiosa moléstia, muitos julgavam aquela sua apatia como certa modalidade de filosofia; mas, não era não! Conformado com os revezes da vida, sentindo aproximar-se dos beirais do túmulo, voltara o espírito para as camadas infinitas do Cosmos!
Em 1918, em plena mocidade e prazeres da vida, cantara ele assim, neste acróstico cheio de doçura e de poesia, a pluralidade dos caracteres que distinguiam a alma do Padre Augusto!...
Seguindo, pois o sábio conselho de Niquinho, vamos encontrar o Padre Augusto agora em Montes Claros, no consultório do mais famoso médico daquela época e região, o Dr. João José Alves, aliás seu compadre e dileto amigo.
-“É, compadre, dizia-lhe o médico tristemente. Niquinho tem razão. Sua moléstia é muito grave... Não tenho meios de tratar por aqui, pois é remanescente daquele tumorzinho que extraí do seu lábio há quarenta anos!...
Quem diria que o câncer fosse uma moléstia tão traiçoeira assim! Há quarenta anos atrás, o Dr. João José Alves, com aquele seu tirocínio que ninguém compreendia, extraira do Padre Augusto, no lábio inferior, um pequeno tumor de origem maligna.
Na Missa do Galo ele nem mais podia se locomover sozinho para a Igreja, sendo por isso mesmo transportado pelo povo na sua velha cadeira de balanço!
A Matriz como em todos os anos, enchia de gente, a maioria soluçando, pois o vinho não queria encontrar caminho na garganta do Padre Augusto!...
Mas o homem, conforme ele próprio dizia, tem o dever, perante o Criador de zelar pela matéria que o reveste. Seguiria o conselho do Dr. João José Alves, e consultaria no Instituto do Rádium.
O câncer, no entanto, enraizara-se nas carnes do Padre Augusto, como árvore frondosa que espalha as suas raízes pelo solo adentro. Assim sendo regressou sem que nada de bom lhe acontecesse. Nenhuma evolução positiva alcançara neste seu intento.
Afirmam alguns médicos que o câncer é uma das moléstias mais cruéis, talvez a que mais atormenta o organismo do homem. A morte de um canceroso pode ser considerada o caminho mais estreito por onde atravessa o espírito humano...
O Padre Augusto, agora cansado pelas lidas de seus 74 anos, vergava agora sob o pedo inclemente daquelas dores atrozes do câncer! Sempre sorridente, contorcia-se com um rosário de lágrimas escorrendo-lhe dos olhos azuis já embaciados. Ali mesmo perto estava um estojo de injeções com a caixa de morfina, lenitivo único dos cancerosos naquela remota época.
Uma pequena agulhada, um instante somente, e seus olhos brilhavam de novo envolvendo a todos numa caricia amiga!
Quando as dores eram mais profundas, delirava e falava coisas incompreensíveis, chamando a todos por determinados nomes e referindo-se assuntos de outras vidas...
A folhinha marcava 17 de Março do ano de 1931 e ele estava escrevendo justamente o último capitulo de sua vida! Acabava de chegar o Cônego Marcos Van In Premonstatense, de origem belga, para lhe dar a extrema unção.
Atravessando heroicamente aquele ciclo da dor, vergado sob o peso torturante da morte, seu olhar ficou parado por alguns instantes, envolvendo aqueles que o rodeavam, mas realmente nada mais vendo desta vida!
Repetindo aquele seu hábito de falar por enigmas, naquele conglomerado de sons mal articulados, pronunciou algumas palavras semelhantes as de “abade”... Câncer... Confessor... e exalou seu último suspiro!...
José, dito de Luciano, criado por ele, amparando-o juntamente com um seu primo de nome Silvio, ambos sufocados pelos soluços, exclamou tristemente: “Acabou-se o Padre Augusto!...” Subitamente um luto fechado caiu sobre toda a localidade! As crianças, em primeiro lugar, sentindo-se esvair aquele seu sustentáculo, o verdadeiro pedestal onde repousavam o amor e a fragrância que se espalhavam por aqueles recantos, mostravam com lágrimas sentidas o quanto era amado e querido o Padre Augusto!
Ninguém ali queria acreditar que um ser tão bondoso, tão amigo dos pequeninos, fosse traiçoeiramente colhido nas malhas da morte. Ninguém ali naquele instante se lembrava de que a morte é a prova suprema, o traço de união entre o finito e o infinito, pois até o Divino Mestre passou por ela um dia no alto do Gólgota, para mostrar aos homens que a vida não cessa com a morte, mas que ela é apenas o começo de uma nova vida!...
Deitado no seu esquife, como se vivo ainda fosse, o Padre Augusto estava revestido de sua melhor batina, presente de um amigo. Sua fisionomia tão bondosa, própria dos seres puros, aparentemente mumificada, sorria para todos aqueles que o rodeavam. Cada qual queria guardar para si uma pequena lembrança sua, um “souvenir”, arrancando sorrateiramente os bambolins da faixa vermelha que lhe apertava a cinta!
Formado o cortejo através daquela rua estreita, onde outrora o povo saudava-o com efusão, o esquife ainda não saíra do cadafalso e já a cruz dianteira chegava à porta da Igreja. Afinal entrava de novo na velha Matriz, aonde dormiria o sono dos justos no meio da nave de sua amada Igreja...
O Cônego Marcos recitou a oração dos mortos:
-“DIES IRAE, DIES IRAI, CALAMITATIS ET MISERIA...”
A cova era profunda, porquanto ninguém queria que o seu corpo se confundisse com os dos pecadores desconhecidos que ali se encontravam desde os tempos remotos de Colônia.
Como última e singela homenagem à memória daquele que fora o maior e mais dedicado dos amigos, mandaram colocar em sua tumba, como ele próprio o desejaria, apenas uma lousa simples com as seguintes palavras:
CÔNEGO AUGUSTO PRUDÊNCIO DA SILVA
Nascido a 31 de Julho de 1856
Falecido a 17 de Março de 1831.
Um grande abraço, conterrâneos. Finalizo neste capitulo a vida do grande e inesquecível Padre Augusto, a quem Brejo das Almas, muito deve.
Enoque A Rodrigues, de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário