Manhã ensolarada de um Domingo qualquer do mês de Dezembro. Coisa rara em Sampa que aquela época se intitulava “a terra da garoa”. Em meu alojamento que se encontrava no primeiro andar da obra em construção, me via cercado por centenas de apostilas. Eram do curso Supletivo, pois tendo eu retomado os meus estudos aqui, não havia outra maneira de recuperar o tempo perdido senão através dos famosos “intensivões”. Fiz o primeiro e o segundo graus em uma das melhores escolas daquela ocasião, a qual ficava no Bairro da Liberdade.
Adiantamento no bolso, única oportunidade no mês em que me sobrava alguns “tostões” para uma simples “farra” como almoçar na antiga “Sopa Paulista”, que ainda hoje, só que com outra roupagem bem mais modesta, permanece na Avenida São João, aqui no centro de São Paulo, onde eu, quando podia, ia saborear um franguinho à caçadora, preparado pelo Chinês, “Seo Woo Shon”, cujo prato, além de demasiado saboroso, era também o mais barato do cardápio e aproveitava para ir assistir um filme "bang-bang", no antigo e não mais existente "Cine Sacy", na Rua Formosa. Eis que, inesperadamente, chega o colega "Peão" Badú. Ele morava também nos alojamentos da Obra, só que nos andares de cima, já que o primeiro andar, onde ficava meu alojamento, era destinado aos Setores de administração da obra, como almoxarifados, apontadoria, engenharia, alojamentos do pessoal administrativo, etc. Eu era apenas ajudante, mais um ajudante “muito especial”, pois eu era “cachimbo” do Mestre “Seo Zé Ivan”, Paraibano de quatro costados. Quais eram, afinal, as atividades de um “cachimbo de Mestre de obras”? Explico: eu era aquele sujeito que além de fazer todas as atribuições de um ajudante. –Vocês viram na pauta anterior eu empurrando “gericas de concreto”-, ainda, devido ser eu à época um dos poucos ali, que sabia ler e escrever, era, sem nenhum outro privilégio a não ser o do alojamento na administração, convidado nos finais de expedientes pelo Mestre “Seo Zé Ivan”, a escrever o que ele me ditava em nossas percorridas pelo canteiro de Obras. Curiosamente, o Mestre “Zé Ivan” não me tratava pelo meu nome de batismo. Ou seja, por Enoque ou “Noquinho” como os demais. Ele me chamava de “Zé Agusto”. Sim, a grafia “Agusto” está correta. O ilustre Mestre, não obstante ser o “degas” na atividade de gerir uma construção (muitos foram os estagiários de Engenharia que passaram pelas suas competentes mãos), era analfabeto, coitado, de nascença, pai e mãe, além de possuir a língua presa ao céu da boca, que muito lhe dificultada o falar. Intrigado, perguntava-lhe eu às vezes: Mais porque “Zé Augusto, querido Mestre”? . Respondia-me: Porque você é muito parecido com o cantor “Zé Agusto” que faz sucesso na televisão, no programa do Silvio Santos, cantando a música “De que vale ter tudo na vida...De que vale a beleza da “fulô”...Se eu não tenho mais seu carinho...Se eu não sinto mais teu calor!” Claro que jamais tive eu qualquer semelhança com o Cantor deste grande sucesso que era só o que se ouvia nas rádios de então. Mais quem era eu para questionar, tentar convencer ou contrariar o Mestre “Zé Ivan”? Perfeito, grande Mestre, dizia-lhe eu: Já que é vossa vontade que eu me sinta parecido com o Cantor José Augusto, tudo bem. Só lhe imploro que não me peça jamais para cantar! Pois ao contrário do que dizia a linda música, da vida eu não tinha nada a não ser a vontade de lutar e vencer e até aquela ocasião, nenhum grande ou pequeno amor tivera eu de cuja perda teria que lamentar... O Mestre sorria com seu cigarro de palha e fumo de rolo preso aos dentes...
Ok, “Zé Agusto”, pegue sua prancheta e vamos logo percorrer a Obra. Ele ia ditando. “Anota ai, Zé Agusto”. Capricha na letra porque isso ai vai para o “Diário de Obras” que é lido pelo “Dr. Dirceu” –naqueles tempos engenheiro era tratado por doutor-. “Chapisco no teto do 10º ao 12º andares”... “Armação de ferragens e formas dos pilares do 14º andar”...”Enchimento das vigas de arranque da garagem do térreo”...”Tamponamento das bocas das lixeiras dos andares 4º ao 7º”...”Inicio da alvenaria com tijolos baianos no 8º andar e amarração com tijolinhos comuns”... “Aplicação de massa corrida nos tetos dos 2º e 3º andares”, etc. Ah, não se esqueça. Anota ai: “fartaram” hoje, quatro peões, sendo dois "meia cuié" (meio oficial de pedreiro), um “selvente” e um “carapina” (carpinteiro). “Deve ser os pileques do final de semana”! Falando nisso, você bebe, “Zé Agusto?”... Não, Mestre, jamais bebi! Você é que faz bem, bom menino... Pinga é a perdição de “carqué home!”, dizia-me.
Bem, voltando á visita de Badú, ele viera até meu alojamento para bondoso como era, me responder algumas das muitas perguntas que eu lhe fizera naquela semana na qual não havíamos tido tempo de voltar a falar.
Pois é, Noquinho! Como hoje é Domingo e nós não “trabalha” vim aqui para lhe atualizar sobre o nosso Brejo das Almas e suas almas queridas que lá estão:
- Pra começar, seu “Dindinho” não anda muito bem e sua “Dindinha” anda meio perrengue. Talvez sejam já os sintomas da idade avançada de ambos. Pois “seo” Liberato já beira os noventa e “Sá” Justina também não fica para trás.
- Quanto as nossas queridas Professoras, faz tempo que não as vejo, Noquinho. Desde que nos mudamos para a Cidade de Francisco Sá, não retornei mais a casa delas. Mais eu acho que está tudo certo, porque se alguma coisa de ruim tivesse acontecido com elas, com certeza eu já saberia.
- Sobre o pessoal que vive lá “dentro do Brejo”, eu posso lhe dar todas as informações que você me pede, pois, nada mudou no nosso “Brejo”. Por incrível que pareça, ele continua do mesmo tamanho. Dessa forma, vejo todos os seus personagens todos os dias. Exceto os “Silveira”, que como você sabe, desde há muito que se mudaram para Montes Claros. E você sabe, “atravessou o rio verde grande, dificilmente volta!”.
- O Bar “estica o braço” do “seo” Neuzão, Noquinho, não existe mais. Parece que ele teve umas desavenças familiares e o pobre tem passado a maior parte do tempo cabisbaixo, meditabundo, sei lá!
- Quanto a Pensão da Dona Quino, continua muito movimentada. É um comércio muito “rendoso”, pois, como você sabe, nossa cidade ainda não tem uma Rodoviária e todos os motoristas e passageiros que vem de Salinas, Taiobeiras, Grão-Mogol e outras da região fazem ponto lá. A Dona Quinó está muito bem de saúde e lhe manda muitas lembranças. Ela ás vezes se põe a recordar de quando você partiu rumo a São Paulo e do que ela lhe disse. É muito bom Noquinho, ser querido por pessoas que nem parente sua é.
- A respeito daqueles nossos amigos, aos quais à maioria, chamava de “loucos”, mais que na verdade, de loucos não tinham nada, estão todos muito bem. Roberto Carlos do Mato, que é o piorzinho deles, é que não anda muito bem. Voltou a ter aqueles desmaios epiléticos, mais é passageiro...
-Uái, Sô, disse-lhe eu: Que desmaios são estes. Jamais os tivera antes. Ao menos que eu saiba.
- Tinha, sim, Noquinho. É que nós nunca podemos saber tudo das pessoas!
- E “Zezim tocador?”.
- Não anda muito bom não, Noquinho! Já não faz mais as “famosas garrafadas” e já não se anima mais a ir para as fazendas “expulsar cobras”, porque, parece que os espíritos já não o atendem mais. Da Outra vez foi lá na Fazenda Vaca Morta...Subiu no mourão da porteira. Deu suas ordens em voz alta para que as cobras saíssem e, sabe, Noquinho. Não saiu uma cobra sequer. Perdeu a “otoridade sobre elas”. Elas não o respeitam mais. O que resta agora do “Zezim tocador” é seu cão que continua lhe prestigiando com seus latidos enquanto toca a sanfona... Mais sabe, Noquinho. Até isso não tem mais a intensidade de antes!
- E sobre os dois riachos, Badú, o que você me diz?
- É triste, Noquinho, mais eu tenho que falar. As águas dos dois riachos onde íamos tomar banho já não são mais claras e azuladas como antes. Parece que andaram “mexendo” lá na cabeceira deles, pois á água agora vem meio que barrenta. E nem precisa chover para que isso aconteça.
- E a Serra do Catuni?
- Bem, Noquinho. Essa sim, continua lá faceira e imponente com sua altitude de 900-1000 e 700-650 metros em média, inalteráveis. Assim como continua lá a nascente do rio São Domingos e outras atrações. Ela continua a varrer as ruas empoeiradas de nosso Brejo com o seu assoprar de ventos fortes, uivantes e ensurdecedores, nas tardes primaveris. Falando em rios, todos os demais leitos, salvo alguns que já secaram, continuam a trilhar as mesmas trajetórias: ribeirão de cana-brava, pau preto, do brejão, o mamonas, o quem-quem, traçadal, o rio boa vista, vaca-brava, córrego dos patos, o caititu, da prata e o córrego rico. O rio gorutuba que continua a formar em seu leito lindos blocos de areia e o que para nós é o maior de todos, o rio verde grande que, viu, Noquinho, continua sendo o marco divisório de nosso município, ou seja, Francisco Sá, “Brejo das Almas” do de Montes Claros.
- Você não me perguntou, mais eu vou lhe falar: Lembra-se da “Lagoa da Barra” que fica na Fazenda de mesmo nome?
- Lembro-me, perfeitamente! Uai, o que aconteceu com a Lagoa da Barra?
- Nada! Continua, também lá. Só que sem peixes!
- Uái, sô. E para onde se foram os peixes?
- Sei, não, Noquinho!
- E O Clube Campestre? Perguntei-lhe, já que me falava da Lagoa da Barra!
- Continua lá! Mais pobre não entra! Somente a nata mais abastada que vem de Montes Claros. Lá, “proleta” não pode nem chegar perto.
- Ah, outra vez eu estava me esquecendo: A sua tia Cota, o seu tio Julio e o seu primo Vadinho, donos da Fazenda Minas Novas, estão muito bem. As plantações estão muito viçosas. A colheita do arroz, alho, feijão e milho prometem ser de muita fartura. As moagens da cana já estarão começando e pelo que podemos notar, vai ser muitas rapaduras, melaço e “puxa de ciidra” que sua tia Cota vai fazer e que lamentavelmente lá não estaremos para comer.
- Badu, meu querido. Interrompi-lhe: falando em comer, lembro-lhe que hoje ´´e Domingo e um dos poucos dias em que disponho de algum no bolso. Convido-o para ir comigo almoçar no “Sopa Paulista”. É tudo por minha conta! Depois você me conta mais.
- Ta bom, Noquinho, respondeu-me. Da outra vez fui eu quem lhe interrompeu lembrando de nosso horário de retornar ao batente. Dessa vez é você quem me interrompe. Só que por um motivo muito “mais nobre” que é “comer”, já que como se falam por ai, “saco vazio não para em pé”. Vamos, então!!!
Um grande abraço “brejeiro” meus conterrâneos de Francisco Sá, ou melhor: de São Gonçalo do Brejo das Almas!!!
Inté!
Enoque A Rodrigues
De, São Paulo, SP.