Enoque Alves Rodrigues
Seu Quincas ao contrário de todas as “jóias do brejo” que serão aqui retratadas, não obstante ter se tornado um autentico brejeiro, não nascera no Brejo das Almas. Vivia ali há muito tempo aonde chegara ainda rapazinho, proveniente de Grão Mogol, sua terra natal.
Em Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, “beldade do norte de minas”, Seu Quincas, ou melhor, Joaquim Dias de Oliveira Bicalho, -era este o seu nome de batismo- tornara-se fiscal da prefeitura, tendo ocupado esta função por inúmeras vezes a qual lhe rendia 20% sobre toda a taxa de arrecadação do município.
Exímio na arte de “riscar a binga” para acender seu cigarrinho de palha carregado pelos melhores fumos produzidos naquele torrão de meu Deus, dedicava-se nas horas vagas que, diga-se de passagem, não eram poucas, ao curandeirismo e a de contador de histórias as quais invariavelmente o tinham, quase que sempre, como o protagonista ou personagem principal, que, como todo final de histórias de super-heróis, estava ele sempre por cima.
Mas uma dessas histórias que ele contava e que certamente era verdadeira, ratificada que era pelo vicio que ele mantinha de tomar, entre uma conversa e outra, grandes pitadas de bicarbonato e também por “dar nome aos bois”, o colocava em uma posição não muito favorável a dos super-heróis. Pelo menos nesta história ele não se saiu bem.
Ei-la:
Foi lá em Grão Mogol, -dizia Seu Quincas-, quando eu era rapazinho. Morrera o Vigário da Freguesia o Padre José Tiago. Um entra e sai dos diabos na casa do morto que era muito querido na cidade. Naqueles tempos era hábito e costume da Igreja de Roma que os defuntos padres fossem lavados com água dos rios que depois de usada ficava guardada em um pote de barro por sete dias quando seria lançada de volta aos rios.
Cheguei à casa paroquial onde o Padre estava sendo velado, tinindo de fome e sede. Morávamos nos arrabaldes de Grão Mogol. Visualizei, ao longe, uma preta velha, serviçal da casa, que em gestos de desespero, com as mãos na cabeça, entrava e saia da casa rezando, em prantos compulsivos.Chorava copiosamente e entre um soluço e outro, entre uma reza e outra, resmungava: “Diabos, com tanta gente ruim pra morrer Deus me vai levá justo o sô vigáro. E adespois ainda dizem que Deus é Justo. Home bom como sô pade, nunca mais vai tê na terra!”
Cumprimentei-a que entretida com sua dor e lamentos, sequer notara ali a minha presença. Dirigi-me a uma sala grande onde, sobre uma mesa cercada por velas em castiçais de ouro, jazia, frio e inerte, o corpo daquele que fora em vida, o benfeitor dos muitos fieis de então. À sua cabeceira, um outro padre celebrava as recomendações de praxe, para que a alma do morto encontrasse lá no além o repouso merecido. Ao seu redor, uma multidão de mulheres velhas com lenços pretos sobre as cabeças acompanhava o terço e ao final de cada ave-maria, respondiam em voz alta ameeem! Entre elas, naturalmente, muitas carpideiras, claro. Elas são partes integrantes de qualquer velório e naquela época não era diferente.
Enquanto isso, um grupo de homens alegres pela “pinga do mogol” palestravam num canto um pouco mais distante da cerimônia. Por mais que eu tenha forçado marcar ali a minha presença, ninguém me deu atenção. Estavam todos compenetrados. Enquanto isso a sede apertava e todos nós sabemos que “quando a sede quer, ela consegue ser mais forte que a fome”. Nesse ínterim, cutuquei um daqueles gaiatos:
- “Ancê num sabe onde é que eu acho água pra beber?. Num agüento mais de sede!”
Antes mesmo de eu terminar a frase o gaiato, pau dágua, como se para se livrar logo de mim, apontou para um dos cantos onde pude visualizar um velho pote de barro que com certeza se encontrava o tão precioso liquido que saciaria a minha sede. Mais que depressa fui até lá. Um amassado e baboso copo de alumínio, não sei por que diabos, ali estava, ao lado do pote. Introduzi-o, desesperadamente, e só depois de haver ingerido vários copos de água, pude me ver livre daquela sede.
Não contava com o tremendo revertério que aquele meu inocente gesto, dali a alguns instantes me causaria.
Comecei a suar frio, enquanto a água dava voltas no estômago. Parecia não ter descido. Tinha a sensação de um grande dilúvio. O meu corpo ficou flácido. As pernas bambas e o meu cérebro não conseguia emitir nenhum sinal de comando. Sem compreender quais eram os motivos daquela reação, fui me queixar com a mesma preta velha. Para que me desse atenção, tive que dar-lhe um beliscão nas polpudas nádegas.
- “Uai, sinhozinho. O que é que tu quer de mim?”
- “De você eu não quero nada!”. Só gostaria que me informasse o que é que vocês colocaram naquela maldita água que está naquele pote, ali!” – disse-lhe, apontando com o indicador para o pote.
- “Apusquê ocê está me preguntando isso? Por acaso ocê num é católico e num cunhece os rito da santa madre igreja?”. Naquele pote que ocê está me apontando é o pote que guarda as água benta que lavaram o corpo de sô pade Zé Tiago. Ela está lá para ser lançada no rio daqui a sete dias!”
Antes que aquela preta velha concluísse aquela inesperada informação, meti os dois dedos na goela e em um só tranco expeli aquele maldito liquido do qual até hoje, como se por castigo, sinto ainda o gosto que só é amenizado quando tomo bicarbonato...
E, num gesto mecânico, finalizava a frase metendo a mão no bornal de onde tirava mais uma pitada daquele “pó sagrado” que por alguns instantes o fazia esquecer do triste episodio vivido em tempos longínquos em sua Grão Mogol.
É...
Por vezes, a mesma água que os outros julgam como benta para eles, pode nos causar os mais sérios transtornos.
Enoque Alves Rodrigues, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.
Enoque Alves Rodrigues, que atua na área de Engenharia, é Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.